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quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Por que o canto gregoriano é supremo?

Iluminura retratando São Gregório, por Taddeo Crivelli.


A música da Igreja é um sacramental, que foi tocado pelo Sangue de Cristo. Isto é particularmente verdadeiro em relação ao canto gregoriano, “que a Igreja Romana tem como próprio… e propõe aos fiéis cristãos como algo próprio deles também”.


Tradução: Equipe Christo Nihil Præponere

Quanto chorei de profunda comoção em vossa igreja, ao suave ressoar de vossos hinos e cânticos! Aquelas vozes me fluíam aos ouvidos, e a verdade se me derramava no coração, e se inflamava então o afeto da piedade, e as lágrimas corriam, e bem eu me sentia com elas 
(Santo Agostinho, Confissões, IX).

A sagrada liturgia expressa as verdades mais elevadas e sublimes não apenas de modo concreto, mas também artístico. O tipo de música requerido por ela é aquele que interpreta os pensamentos e sentimentos de Cristo e da Igreja em sua ação unificada. Ele deve ser um meio adequado para levar até o trono de Deus as orações dos fiéis católicos.

É quase impossível negar que a música sacra e os hinos litúrgicos são um meio poderoso de oração e treinamento da mente e do coração. Na tradição católica, sobriedade, gravidade e nobreza sempre caracterizaram a música sacra apresentada nos espaços sagrados.

Os diversos timbres musicais evocam nas pessoas emoções correspondentes. Existe uma relação misteriosa entre música e melodia e as mais profundas aspirações humanas. A música sacra nos instiga a sentir repugnância pelas coisas pecaminosas do mundo. A música e o canto enchem a alma de alegria e consolo. Segundo Cassiodoro:

[A música] afugenta a má tristeza com a alegria; mitiga os furores do orgulho; abranda a crueldade sangrenta; afugenta a preguiça e a languidez abatedora; concede aos que rezam salubérrima quietude [vigilantibus reddit saluberrimam quietem]; chama os viciados em amores torpes de volta à castidade; cura do tédio a mente avessa aos bons pensamentos; converte os ódios perniciosos em graças auxiliantes; e… por prazeres dulcíssimos expele as paixões da alma 
(Variarum II, Ep. 40: PL 69, 571).

De fato, isto sempre foi realidade ao longo da história. O herói de Homero encontrou alívio para as dores de um coração enfermo ao sentar-se debaixo de uma rocha elevada à beira-mar e entregar-se ao canto. Saul teve suas conturbadas paixões aplacadas, e sua tristeza, desconfiança e inveja dissipadas, pela música da harpa de Davi.

Em geral, os católicos não têm muita consciência do poder da música sacra e do fato de que a música da Igreja é um sacramental, que foi tocado pelo Sangue de Cristo. Isto é particularmente verdadeiro em relação ao canto gregoriano, “que a Igreja Romana tem como próprio — porque recebido da antiga tradição e mantido no decurso dos século sob a sua cuidadosa tutela — e propõe aos fiéis cristãos como algo próprio deles também” (Mediator Dei, 176).

Na verdade, diz a Mediator Dei, o canto “não só acrescenta decoro e solenidade à celebração dos divinos mistérios, antes contribui extremamente até para aumentar a fé e a piedade dos assistentes” (176). E “a multidão que assiste atentamente ao sacrifício do altar, no qual nosso Salvador, junto com os filhos remidos pelo seu sangue, canta o epitalâmio da sua imensa caridade, certamente não poderá calar, pois cantare amantis est: ‘cantar é próprio de quem ama’” (177).

O Pe. Fidelis Boeser, O.S.B., recém-falecido, chamou o canto gregoriano de “pulsação do Coração de Cristo”. Certamente, quando as palavras da liturgia sagrada, tão cheias de poder sacramental, são apresentadas a Deus Pai junto com a fragrância dos cantos sacramentais, honramos ainda mais a majestade do Senhor. Não estamos aqui na terra para conhecer, amar e servir a Deus, celebrando-o por meio do culto oficial da Igreja, tal como ela nos instruiu em sua sabedoria? 

 
“São Gregório Magno”, por José de Ribera.

O canto gregoriano abarca as tradições musicais da sinagoga e da Igreja. É a forma romana do antigo cantochão, que se distingue de outros cantos litúrgicos, como o ambrosiano, o galicano e o moçárabe. Historicamente, o canto gregoriano suplantou gradualmente esses outros cantos entre os séculos VIII e XI.

É chamado de gregoriano por causa de São Gregório Magno, que ocupou a cátedra de São Pedro de 590 a 604. Segundo a tradição, foi ele quem elaborou o arranjo final para essas melodias e determinou que elas fossem aperfeiçoadas e publicadas. Aquilo que se tornou o antifonário gregoriano gradualmente se espalhou de Roma para todo o mundo católico.

Conta-se que foi Gregório Magno quem descobriu a oitava como sucessão naturalmente perfeita dos sons e distinguiu as diversas notas por meio de letras. Ele também acrescentou muitos novos cantos às belas harmonias que desde então receberam o nome de “gregorianas”.

A ideia atual da pauta com quatro linhas e claves móveis parece ter surgido muito mais tarde e é atribuída ao monge beneditino Guido d’Arezzo, que viveu no século XI. Conta-se também que foi ele quem nomeou as primeiras seis notas da oitava. Originalmente, a nota “dó” era chamada de “ut”, e os seis nomes (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) foram tirados do hino das Vésperas da festa de São João Batista:

Ut queant laxis resonáre fibris
mira gestórum muli tuórum,
solve pollúti bii reátum,
sancte Ioánnes.

O canto gregoriano é essencialmente diatônico, isto é, as melodias são formadas a partir dos tons da escala diatônica, sem qualquer relação preconcebida com um acompanhamento harmônico. As melodias são cantadas em uníssono, sem nenhuma medida fixa de tempo, mas de acordo com o ritmo da língua falada.

Já se disse muito bem que, por meio da música e da poesia sublimes de sua liturgia, a Igreja contribuiu para a conversão das nações com a mesma eficácia que tinha a sua pregação. Conta-se que Santo Agostinho [da Cantuária] e seus 49 monges encantaram os nativos na Grã-Bretanha com seus cantos gregorianos. São Bonifácio o utilizou para abrandar os costumes selvagens das tribos pagãs germânicas. Carlos Magno favoreceu sua expansão por todo o Império Franco e, em união com os Pontífices Romanos, utilizou-o como um dos mais poderosos instrumentos para civilizar seus vastos territórios.

Por essa razão, não surpreende o fato de Pio X, em seu Motu Proprio [Tra le sollecitudini] de 22 de novembro de 1903, ter determinado a restauração universal da autêntica melodia gregoriana como o único canto da Igreja Romana, descrevendo-o como “o modelo supremo da música sacra” (que é o mesmo que música litúrgica) por conter em grau mais elevado as qualidades características da música sacra: verdadeira arte e santidade.

Portanto, dado o caráter supremo de sua natureza e sua capacidade artística, o canto gregoriano é completamente indispensável na celebração da liturgia solene, já que é parte integral da liturgia romana. Tanto é assim que, se não houver canto, a Missa cantada não pode ser celebrada de forma adequada. Tal é a relação entre a liturgia da Igreja e a música empregada por ela, como têm estabelecido ao longo dos séculos as diretivas do Vaticano.

Embora não escutemos o canto gregoriano em todos os lugares atualmente, ele está claramente retornando em algumas paróquias graças a uma renovada apreciação de sua capacidade artística e propensão — uma tendência e habilidade naturais — a atingir as profundezas da alma dos que têm a graça de escutá-lo ao vivo no contexto e no drama dos ritos sagrados, o culto oficial da Igreja.

O fato de um período caótico e mal educado não conseguir entender com clareza estas simples verdades não muda o fato de que o canto gregoriano reina supremo e está retornando com intensidade. Nas palavras de G. K. Chesterton: “Os planos mais ambiciosos para o futuro invocam a autoridade do passado”. O mundo é velho, mas a Igreja (tal como o canto gregoriano) — sempre antiga e sempre nova — é jovem.

Finalmente, é útil incluir aqui o verbete sobre canto gregoriano presente no Catecismo Católico Popular, de Francisco Spirago, um recurso bastante conhecido e confiável:

É provável que o santo pontífice [Gregório Magno] tenha se ocupado dele em virtude de uma inspiração ou de uma revelação divina: é por isso que é sempre representado com uma pomba junto do ouvido. Este canto é de uma gravidade sobrenatural, de uma tranquilidade sacra, de uma majestosa sublimidade; é isento de todos os movimentos apaixonados ou estrondosos e não procura os efeitos; distingue-se assim do canto das ruas, dos concertos, dos teatros e dos divertimentos públicos. 
É como a linguagem do outro mundo mais elevado, é o verdadeiro canto da oração. 
No cantochão olha-se antes de mais nada para as palavras do texto, que se percebem muito distintamente; a bela e modesta melodia só se nota em segundo lugar. 
Mas este canto não é ligado pelo ritmo nem pela medida, e é precisamente esta independência que cativa o homem, como a torrente da eloquência lhe arrasta o coração. 
O canto gregoriano é invariável como a liturgia, e conserva-se por toda a parte e sempre o mesmo; é assim que ele responde melhor à essência e às qualidades da nossa Igreja, à sua unidade e universalidade. 
‘Os cristãos piedosos preferem este canto a qualquer outro, porque ele eleva os corações à devoção e à piedade’ 
(Bento XIV).


Nossa Senhora Rainha dos Anjos, rogai por nós!

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