Rômulo Cyríaco |
Set 06, 2017
A criação do homem
No Evangelho de São
Mateus, lemos que, nos confins da Judeia, para além do Jordão, alguns
fariseus se aproximaram de Jesus com o intuito de o testarem no
conhecimento da lei, perguntando a Ele se era permitido a um homem
repudiar a sua mulher, por qualquer motivo. Assim Jesus respondeu: “Não
lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher, e disse:
‘Por isso, o homem deixará seu pai e sua mãe, e se unirá à sua mulher, e
os dois serão uma só carne’? Portanto, já não são dois, mas uma só
carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem”. Os fariseus, em
seguida, questionaram Jesus: “Por que foi então, perguntarem eles, que
Moisés preceituou dar-lhe carta de divórcio ao repudiá-la?”. Ao que
Jesus replica, concluindo: “Por causa da dureza do vosso coração, Moisés
permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas no princípio não foi
assim” (Mt 19,4ss). No Evangelho de São Mateus, lemos que, nos confins
da Judeia, para além do Jordão, alguns fariseus se aproximaram de Jesus
com o intuito de o testarem no conhecimento da lei, perguntando a Ele se
era permitido a um homem repudiar a sua mulher, por qualquer motivo.
Assim Jesus respondeu: “Não lestes que o Criador, desde o princípio, os
fez homem e mulher, e disse: ‘Por isso, o homem deixará seu pai e sua
mãe, e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne’? Portanto,
já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o
separe o homem”. Os fariseus, em seguida, questionaram Jesus: “Por que
foi então, perguntarem eles, que Moisés preceituou dar-lhe carta de
divórcio ao repudiá-la?”. Ao que Jesus replica, concluindo: “Por causa
da dureza do vosso coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas
mulheres; mas no princípio não foi assim” (Mt 19,4ss).
Trata-se, esta, de uma passagem evangélica que permeia quase a integridade do projeto teológico de São João Paulo II, na Teologia do Corpo. Cristo, quando remete seus interlocutores ao princípio, refere-se à indissolubilidade do matrimônio
como fundamentada por Deus Criador no ato mesmo da criação. Pode ser
que, numa determinada cultura, o matrimônio seja dissolvido, na prática,
mas no princípio não era assim, afirmação esta que tem dois
sentidos imediatos: não era assim no princípio da vida, logo após a
criação e antes do pecado original; e não é assim, ainda e sempre, na alma do ser humano, que traz sempre consigo o princípio,
e suas finalidades. Tudo o que Deus estabeleceu para nós no princípio, a
alma humana sente em si mesma não apenas como profunda necessidade, mas
como realidade inalterável, ainda que – por causa do pecado original –
possa tornar-se cega e surda para os chamados interiores, que, de uma
maneira ou de outra, repercutem na consciência, por exemplo: 1) toda
alma humana sabe e sente que está se tornando “uma só carne” com outra,
mesmo numa relação sexual extraconjugal casual, e todas as sensações
estranhas, psíquicas e emocionais, que possam advir depois da mesma –
como a culpa e a repulsa – vêm daí, da percepção profunda de uma fratura
entre a alma e o corpo; muitas psicanálises e terapias, por exemplo,
tentarão extirpar essas sensações da pessoa como sendo efeitos estranhos
e “neuróticos”, adquiridos de um suposto “moralismo” da cultura, não
percebendo que é a verdade se manifestando ou reclamando;
e, assim, colabora-se com a mentira; 2) toda alma humana sente que seu
matrimônio é indissolúvel, ainda que faça esforço para se adaptar (até
discursivamente) a uma cultura em que a fragmentação das famílias se
tornou praticamente a regra, e nisso se pode incluir não apenas homens e
mulheres que são cônjuges, mas também os filhos por esses gerados, que necessariamente sofrem com o divórcio, pois o que parece uma “simples” separação externa, é a grave separação interior de uma unidade que, na alma, no princípio,
é indissolúvel e permanecerá sendo, ainda que a aparente
“dissolubilidade” de tal vínculo no plano visível da cultura se torne
mais e mais popular. A dessincronização entre a cultura e as
necessidades da alma é uma das tragédias humanas que parecem acentuar-se
ao nível do paroxismo conforme nos aproximamos do fim dos tempos.
Há quase dois mil anos, naquele diálogo, tratando-se de um grupo de
fariseus, Jesus sabia que estava falando com pessoas que conheciam muito
bem o texto das Escrituras. Refere-se, especificamente, ao Livro do
Gênesis, e ao relato da criação do homem e da mulher, no primeiro e
segundo capítulos do mesmo. De forma complementar, também esses são
textos que devemos ter sempre em mente para que compreendamos com
precisão as conclusões do Santo Padre. O Gênesis nos revela que “O
Senhor Deus tomou o homem e colocou-o no jardim do Éden para cultivá-lo e
guardá-lo. Deu-lhe este preceito: ‘Podes comer do fruto de todas as
árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e
do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente'”. E
continua:
O Senhor Deus disse: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada.” Tendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais dos campos, e todas as aves dos céus, levou-os ao homem, para ver como ele os havia de chamar; e todo o nome que o homem pôs aos animais vivos, esse é o seu verdadeiro nome. O homem pôs nomes a todos os animais, a todas as aves dos céus e a todos os animais dos campos; mas não se achava para ele uma ajuda que lhe fosse adequada. Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem. “Eis agora aqui, disse o homem, o osso de meus ossos e a carne de minha carne; ela se chamará mulher, porque foi tomada do homem.” Por isso o homem deixa o seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher; e já não são mais que uma só carne. O homem e a mulher estavam nus, e não se envergonhavam (Gn 2,15-25).
Quando as Escrituras inspiradas revelam que Deus criou o ser humano à
sua imagem e semelhança, conforme nos aponta São João Paulo II, é
evidenciada a “impossibilidade absoluta de reduzir o homem ao ‘mundo'”,
isto é: o homem não pode e nem deve ser compreendido, nem explicado, com
as categorias deduzidas do mundo, isto é, do “conjunto visível dos
corpos” (Teologia do Corpo, 2). Esta conclusão é grandiosa,
pois trata-se mesmo de um elemento que aparece, de formas contrárias,
nas escolas de pensamento que conflituam no mundo moderno: a maioria
delas, de um lado, parece querer reduzir o homem ao mundo, repudiando
qualquer explicação da vida humana que recorra a um plano transcendente –
assim mundanizando-nos, animalizando-nos; outras, enraizadas em
tradições antigas como o cristianismo ou a filosofia grega aristotélica,
reafirmam e defendem que é precisamente isto que caracteriza o ser
humano em sua especificidade, a saber, que o mesmo possui semelhanças
físicas ou biológicas com os outros animais, mas possui uma alma
racional que, como diz Aristóteles, eleva-o acima das outras espécies,
que só possuem alma vegetativa e alma sensitiva. A parte racional da
alma humana, para o Estagirita, estava claramente enraizada no eterno,
num plano transcendente, isto é, no divino, ainda que nosso corpo
visível esteja presente na natureza, juntamente dos outros
seres e coisas. A perfeição da revelação bíblica, no entanto,
explica-nos também o por quê do surgimento de tantas escolas de
pensamento que tentam negar a transcendência, e desumanizar o homem, no
período moderno, e também por que essa negação se faz presente na
prática de tantos seres humanos: trata-se de uma consequência do pecado
original; Adão, com medo, esconde-se de Deus nos arbustos do jardim. A
isto veremos melhor em outro artigo; por ora sigamos com os fatos do princípio.
As narrativas do Gênesis supracitadas descrevem o estado do ser
humano logo após a criação, em comunhão com seu Criador: a felicidade
dos primeiros homens, e sua inocência original, antes da primeira queda. O ser humano foi criado como sujeito de uma aliança, constituído como pessoa – superior aos animais, os quais, na verdade, nomeia – e à altura de “companheiro do Absoluto” (Teologia do Corpo,
6). Dotado de alma – onde está impressa a imagem e a semelhança de
Deus, seu Criador – e de liberdade, é dado ao homem “discernir e
escolher conscientemente entre o bem e o mal”, quando Deus estabelece o
limite que o ser humano deveria respeitar para permanecer em plena
aliança. Tratava-se de uma escolha entre a vida e a morte: comer da
árvore da ciência do bem e do mal, barraria-lhe o acesso à árvore da
vida. É da vontade de Deus que o homem viva plenamente, e esteja
absorvido inteiramente pela aliança – mas a permanência na relação com Deus deve ser uma escolha livre do ser humano. Como Adão sentiu-se sozinho, desejando uma semelhante que pudesse estar com ele em relação, Deus é pleno e não precisa de nada além de Si mesmo, mas quis, por amor, criar-nos livres, para viver uma relação pessoal com cada alma por Ele criada. Não há verdadeira relação
quando uma das partes é privada de liberdade, e mesmo os vínculos
humanos mais definitivos, como o casamento, expressam isso: nesses, não
há perda de liberdade, mas o ganho de uma realidade relacional rica, com
o livre consentimento da pessoa. Como a pessoa permanece livre
para rejeitar a aliança, é preciso que a sua afirmação seja livremente
mantida e reafirmada, diariamente, e ao longo do tempo. E como a
intimidade mútua de um casal aumenta e se enriquece com o tempo e a
convivência, também assim acontece entre a alma de uma pessoa e Jesus
Cristo.
Os animais, por sua vez, não são livres, pois, não tendo alma
racional, apenas obedecem a seus instintos; nós, humanos, temos
instintos – alma vegetativa, alma sensitiva – mas também respondemos a
Deus, com nossa alma propriamente humana. Nisso tudo
encontra-se a irracionalidade da concepção pós-moderna de “liberdade”,
que seria algo como não estar limitado por nenhuma restrição (seja
interna, ou externa) e, logo, não precisar responder por nada.
Enquanto isso, a realidade de nossa verdadeira e inescapável liberdade –
enraizada em nossa alma, e em sua semelhança, e relação, com o Criador –
apenas estabelece que somos livres para escolher o mal, mas
jamais isentos das consequências dessa escolha; e, portanto, a escolha
do bem também deve necessariamente ser livre, intencional,
consciente e proposital. Todos os esforços políticos de escolas modernas
como o socialismo marxista, entre outras utopias, nada mais é do que a
imaginação de um estado de coisas em que a vida humana seria
essencialmente boa, e socialmente perfeita, sem que fosse necessário um
esforço consciente para o bem: o último esforço seria o da implementação
de tal sistema de poder que tornará a vida “perfeita” e sem tensões,
dificuldades ou desigualdades, e para isso também basta permitir que os
seus representantes tomem o domínio de tudo. Trata-se, precisamente, do
falso paraíso na terra, o verdadeiro ópio do povo, que na prática só
resulta no seu contrário, e a tantos infernos concretiza em nossa
realidade. Para não cair nestas perigosas iscas, deve-se reconhecer duas
coisas sobre a alma humana: ela traz em si a semelhança com Deus, e a
relação com Ele, a memória e o desejo do paraíso; mas também,
intrinsecamente, traz as más inclinações, inextirpáveis nesta vida,
herdadas do pecado original. Portanto, qualquer regulação legítima da
vida humana, individual e social, deve partir dessa percepção, e da
necessidade de uma educação para a liberdade, para a responsabilidade, e
para o amor.
Mas, como vimos, o homem é também corpo, e o corpo do homem – muito
diferentemente do que queriam os heréticos gnósticos – é realidade do
vínculo do homem com o seu Criador, em vez de ser algo de que o homem
devesse se desvencilhar, para restar somente a alma, esta sim boa e
divina. O corpo do homem possui uma dimensão de sacramento, isto é, de realidade e sinal visível daquilo que ocorre em sua alma – pense, especialmente, no rosto humano,
e suas finas expressões emocionais, assim como seus sorrisos,
reveladores, na dimensão visível, de algo que somente o ser humano vive
na dimensão invisível. Com o ser humano, no princípio – e, em especial, antes do pecado original – entrou a santidade no mundo visível, que, por sua vez, foi criado por Deus para
o homem. Aí também se expressa o amor especial que Deus tem para
conosco, diante de toda a criação. “Na criação, antes do pecado
original, o homem se constitui como que um primordial sacramento,
entendido como sinal que transmite eficazmente ao mundo visível o
mistério invisível, oculto em Deus desde a eternidade. (…) O corpo, de
fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o
espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade
visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim
d’Ele ser sinal” (Teologia do Corpo, 19). A inocência original do ser humano no princípio, ligada à experiência do significado esponsal
do corpo – isto é, feito para desposado, para ser doado, do homem para a
mulher, da mulher para o homem, em sua complementaridade biológica e
subjetiva – “é a santidade que permite ao homem exprimir-se de modo
profundo com o próprio corpo, e isso precisamente mediante o ‘dom
sincero’ de si mesmo”. O corpo humano é lugar de santidade, lugar onde
Deus se torna visível à totalidade da criação. “A consciência do dom [de
si mesmo, corpo e alma] condiciona, nesse caso, ‘o sacramento do
corpo’: o ser humano se sente, no seu corpo de varão e de mulher,
sujeito de santidade” (Teologia do Corpo, 19).
O valor inestimável da Teologia do Corpo, de São João Paulo
II, no momento histórico preciso em que a realizou, oferecendo ao homem
do Século XX, através das palavras de Jesus Cristo (que é, Ele mesmo, a
Palavra de Deus viva e encarnada) a rememoração do que nós somos, como
humanos, em princípio, deve-se ao fato de que “a situação
interior e, ao mesmo tempo, cultural do homem de hoje parece afastar-se
daquele ‘princípio’ e assumir formas e dimensões que divergem da imagem
bíblica do ‘princípio’ em pontos evidentemente cada vez mais distantes” (Teologia do Corpo, 23).
No meio da rebelião social e sexual da sociedade moderna e
contemporânea, a teologia católica do corpo e da sexualidade, e sua
aplicação direta na vida humana como um firme critério educacional (para
nós mesmos e nossos filhos) no sentido do reencontro da plenitude e da
verdadeira realização, é, de fato, “uma ilha de valor em uma mar de
preços” – uma possível recuperação de dimensões humanas cada vez mais
negligenciadas e repudiadas pelo homo economicus, e pelo
exército multiculturalista e politicamente correto do poder global, que
visa ao controle massivo das respostas humanas. Serve também como fonte
de conhecimento da reta doutrina cristã para todos aqueles que vivem
nesta civilização em crise e ignoram a realidade de seus antigos
fundamentos, conhecendo-a somente através dos estereótipos equivocados
do senso comum anti-cristão e, mais especificamente, anti-católico. A
religião católica é comumente referida pelo homem moderno tomado pelo ethos
da rebelião como sendo uma instituição “repressora da sexualidade”, ou
que considera tudo o que é “sexual” como “pecado”, e nada está mais
distante da verdade do que essa visão. Como veremos, através da obra de
São João Paulo II, e em seguida através de outros documentos da Igreja, o
que Jesus Cristo realmente nos trouxe, na Nova Aliança, é a
possibilidade de recuperarmos o verdadeiro valor do corpo e da sexualidade, um altíssimo, sagrado valor – e da vida humana em si mesma.
Aqui vale também, ainda que rapidamente, um aceno à tendência da
“nova era” de afirmar uma espiritualidade desinstitucionalizada,
destacada da religião: em primeiro lugar porque, do ponto de vista
cristão, é bíblica e fundamental a indissociabilidade entre Cristo e a
Sua Igreja, que é sacramento de Sua presença viva na terra; em segundo
lugar, porque aquela, da nova era, é uma espiritualidade rebelde, e a
rebeldia é o oposto da frutificação virtuosa do espírito, que só pode
reencontrar a árvore da vida na obediência ao Criador autorrevelado.
Deus quer fazer uma aliança com as almas; enquanto isso, o
demônio quer, de um lado torná-las materialistas, de outro apenas
“espiritualiza-las”, sustentando um discurso anti-religioso que deve
seriamente nos preocupar, já que, assim, tantas almas ficam em terreno
turvo e vulnerável, presas nas ilusões do Satanás que se transfigura em
anjo de luz. “Eu, ser batizado por um homem pecador? Eu, me confessar
para um homem, pecador? Deus se manifesta em todas as religiões, ou
basta que eu converse com Deus, diretamente”. Essa é a mentalidade
moderna e pós-moderna, para a qual se tornou inaceitável a verdade de um
Deus que, intencionalmente, fundou uma instituição, que instituiu,
Ele mesmo, uma economia sacramental, ministrada por homens, a qual
devemos humildemente recorrer. Afinal, o próprio testemunho de Cristo,
não apenas em palavras mas em ações, é aquele da humildade inigualável
do Deus que se fez Homem e que antes disso se fez Menino, em tudo
dependente de uma Mãe – mostrando-nos que a humildade, aos homens, é o
caminho para se aproximar de Deus – e que vai, Ele mesmo, aquele que a
todos batiza, ser batizado por um homem. “João recusava-se: Eu
devo ser batizado por ti e tu vens a mim! Mas Jesus lhe respondeu: Deixa
por agora, pois convém cumpramos a justiça completa” (Mt 3,14-15).
Fonte: Aletéia
São João Paulo II, rogai por nós!
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