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sábado, 30 de julho de 2022

Como ser um santo?



"Santi­ficai-vos, e sede santos, porque eu sou o Senhor, vosso Deus."
(Levítico 20, 7)
 
"A exemplo da santidade daquele que vos chamou, 
sede também vós santos em todas as vossas ações
pois está escrito: 
Sede santos, porque eu sou santo (Lv 11,44)."
(I Pe 1, 15-16)

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

sexta-feira, 29 de julho de 2022

A Excomunhão dos Comunistas



No dia 1º de julho de 1949, a Congregação do Santo Ofício, desde 1965 denominada Congregação para a Doutrina da Fé, publicou o chamado Decreto contra o Comunismo, constante de respostas a quatro questões sobre a matéria. Tais respostas haviam sido confirmadas pelo papa da época, Pio XII, aos 30 de junho, portanto, no dia anterior à publicação. 

As congregações são órgãos da Cúria romana que assessoram diretamente o papa no governo da Igreja católica. Fazendo-se uma analogia, elas estão para a Igreja católica como os ministérios estão para o governo federal brasileiro. Assim, a Congregação para a Doutrina da Fé corresponderia ao ministério do papa para a defesa da fé, a Congregação para o Culto Divino ao ministério para assuntos de liturgia, a Congregação para as Causas dos Santos ao ministério das canonizações, e assim por diante. Conforme o motu proprio “Praestantia Scripturae”, de S. Pio X, todos os católicos «por dever de consciência estão obrigados a submeter-se (...) às sentenças das sagradas congregações referentes a questões doutrinais, aprovadas pelo Pontífice, e não podem evitar a nota de desobediência e temeridade e, portanto, não estão livres de grave culpa quantos, por palavra ou por escrito, impugnarem estas sentenças». Destarte, as sentenças das congregações romanas em matéria de doutrina, quando aprovadas pelo papa (como é o caso do Decreto contra o Comunismo), constituem magistério autêntico da Igreja e, como tal, vinculam a consciência dos fiéis católicos

Há algum tempo, no entanto, foi-se formando uma celeuma em torno da interpretação do Decreto contra o Comunismo de 1949, o que vem inquietando a consciência de muitos fiéis. A celeuma é provocada particularmente por certos militantes das redes sociais que usam o mencionado Decreto para dizer, com evidente exagero, que todos aqueles que votam em partidos considerados de esquerda, ou apoiam propostas de seus programas, estão “automaticamente excomungados”. O objetivo desta comunicação é repor a questão em seus justos termos e expor, com objetividade e evitando toda a polêmica desnecessária, os princípios e critérios que levam a uma interpretação correta do Decreto de 1949. 

Antes de mais nada, cumpre transcrever o texto do Decreto contra o Comunismo, tal como se encontra na tradução brasileira do DENZINGER (parágrafo 3865, pp. 850-1): 

«Perguntas

1. É permitido aderir ao partido comunista ou favorecê-lo de alguma maneira? 
2. É permitido publicar, divulgar ou ler livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas ou escrever neles? 
3. Fiéis cristãos que consciente e livremente fizerem o que está em 1 e 2, podem ser admitidos aos sacramentos? 
4. Fiéis cristãos que professam a doutrina materialista e anticristã do comunismo, e sobretudo os que a defendem ou propagam, incorrem pelo próprio fato, como apóstatas da fé católica, na excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica? 

Resp. (confirmada pelo Sumo Pontífice 30/06): 

Quanto a 1: Não; o comunismo é de fato materialista e anticristão; embora declarem às vezes em palavras que não atacam a religião, os comunistas demonstram de fato, quer pela doutrina, quer pelas ações, que são hostis a Deus, à verdadeira religião e à Igreja de Cristo. 
Quanto a 2: Não, pois são proibidos pelo próprio direito (cf. CIC, cân. 1.399). 
Quanto a 3: Não, segundo os princípios ordinários determinando a recusa dos sacramentos àqueles que não têm a disposição requerida. 
Quanto a 4: Sim.» 

Este, que vocês acabam de ler, é o texto integral da tradução brasileira do Decreto contra o Comunismo, publicado pela Congregação do Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé), no dia 1º de julho de 1949. Passemos agora a comentá-lo. 

A primeira coisa que salta aos olhos quando lemos o texto do Decreto contra o Comunismo é que ele não constitui um “decreto” no sentido em que usamos esta palavra no direito secular (por exemplo, no direito constitucional ou administrativo brasileiro). A ideia que geralmente temos de um decreto, no direito secular, é a de um texto articulado de determinações imperativas, as quais impõem novas normas, que revogam o direito anterior ou que a ele se acrescentam. Ao contrário, o Decreto contra o Comunismo consta de respostas a quatro questões formuladas sobre a interpretação da doutrina moral da Igreja e do direito canônico então vigente. Destarte, a primeira constatação que podemos fazer sobre o Decreto sobre o Comunismo é que ele visa a esclarecer quatro possíveis dúvidas sobre pontos particulares da doutrina e da disciplina da Igreja, não a estabelecer novas normas. Trata-se, portanto, de um decreto interpretativo, e não de um decreto constitutivo

Uma segunda conclusão que podemos inferir a partir da leitura do conjunto do Decreto é que ele trata de excomunhão apenas na resposta à quarta pergunta. Mais adiante discutiremos se é legítimo extrapolar o sentido desta última resposta a outras situações não explícita e estritamente nela previstas. 

Passemos agora a um breve comentário de cada uma das respostas em particular. A primeira resposta declara que não é lícito aderir ao partido comunista ou favorecê-lo de uma forma qualquer, porquanto o comunismo é, de fato, materialista e anticristão; além disso, embora possam dizer, às vezes, que não atacam a religião, os fatos comprovam a hostilidade da doutrina e das ações dos comunistas contra a religião católica. 

Esta resposta permaneceria válida para o nosso tempo? Evidentemente que sim: se uma associação qualquer professa uma doutrina materialista (ou seja, uma doutrina que nega a existência de Deus e a imortalidade da alma humana) e promove uma ação anticristã, é uma incoerência que um fiel católico se inscreva nessa associação ou a ajude de qualquer maneira. Aliás, o cânon 1.374 do vigente Código de Direito Canônico, promulgado por S. João Paulo II em 1983, manda punir com “justa pena” (mas não com excomunhão latae sententiae) “quem se inscreve em alguma associação que maquina contra a Igreja”. Observe-se, entretanto, que tal norma vale não apenas para os partidos que se autointitulam “comunistas”, como também para a Maçonaria. Se é uma incoerência um fiel católico inscrever-se num partido declaradamente comunista, é igualmente incoerente apoiar ou prestar favor à Maçonaria, a pretexto de combater o comunismo

A segunda resposta declara que publicar, divulgar ou ler livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e a ação dos comunistas, e também escrever neles, estava proibido pelo próprio direito, com citação ao cânon 1.399 do Código de Direito Canônico de 1917. Nesse ponto houve, parcialmente, uma modificação. Por uma notificação da Congregação para a Doutrina da Fé, de 14 de junho de 1966, a proibição da leitura de textos contrários à fé ou à moral deixou de ser acompanhada de sanções canônicas. Entretanto, como a própria notificação fez questão de frisar, essa proibição, se deixou de ter sanção canônica, permanece com seu valor moral. Efetivamente, por direito divino temos o dever de conservar a nossa fé e evitar as ocasiões de pecado. Por consequência, não devemos ler livros ou textos contrários à fé católica, como o são os livros comunistas, se não temos o conhecimento necessário para refutar seus erros e não se deixar levar por eles. Ocorre, por outro lado, que há certos militantes anticomunistas que falam tanto do comunismo que acabam sendo contraproducentes: terminam por fazer propaganda da leitura dos textos comunistas, entre gente que talvez não esteja preparada para lê-los sem perigo. 

Outra modificação à disciplina exposta pela segunda resposta do Decreto contra o Comunismo foi efetuada pelo cânon 831 do atual Código de Direito Canônico. Este cânon permite que os leigos católicos possam escrever “nos jornais, opúsculos ou revistas periódicas que costumam atacar abertamente a religião católica ou os bons costumes” (e, portanto, nos jornais e revistas comunistas), desde que haja “motivo justo e razoável” (por exemplo, se o jornal comunista abrir espaço para um autor católico contestar o comunismo ou defender a fé). Entretanto, segundo o mesmo cânon, os clérigos e religiosos só podem fazer isso se primeiro obtiverem licença do bispo diocesano ou do vigário geral ou episcopal da diocese. 

A terceira resposta declara que não podem ser admitidos aos sacramentos os fiéis cristãos que: (a) adiram ao partido comunista ou o favoreçam de alguma forma; e/ou (b) publiquem, divulguem ou leiam livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas, ou escrevam neles. A resposta se justifica pelos princípios ordinários que determinam a recusa aos sacramentos àqueles que não têm a disposição requerida. 

Observem que essa resposta não fala em excomunhão, mas na falta das disposições requeridas para a recepção dos sacramentos. São conceitos distintos, que não podem nem devem ser confundidos. Excomunhão é uma pena eclesiástica, imposta em razão do cometimento de um delito (crime) canônico. As penas eclesiásticas, entre elas a excomunhão, pertencem ao objeto do direito penal canônico. As disposições para a recepção dos sacramentos, ainda que possam receber tratamento canônico, pertencem primariamente ao objeto da teologia moral

Todos os sacramentos são realidades sobrenaturais que requerem, da parte daqueles que os recebem, determinadas disposições para que essa recepção seja válida, lícita e frutuosa. Assim, por exemplo, para aqueles que já chegaram à idade da razão, é uma disposição necessária para a recepção válida dos sacramentos a intenção de recebêlos. Se um adulto é batizado à força, esse batismo não é válido pela falta de uma disposição necessária para a sua validade: a intenção do sujeito. Outras disposições são necessárias para a recepção lícita dos sacramentos. Neste caso, os sacramentos são válidos, mas são recebidos ilicitamente. A recepção ilícita dos sacramentos constitui pecado de sacrilégio, pois trata-se da profanação de uma coisa sagrada. 

Entre as disposições necessárias para a recepção lícita dos sacramentos inclui-se, para aqueles que já alcançaram a idade da razão, a chamada atrição sobrenatural, que compreende a vontade de deixar o pecado e mudar de vida. Aliás, sem atrição sobrenatural, a absolvição sacramental não é sequer válida. Em relação aos chamados sacramentos de vivos (confirmação, Eucaristia, unção dos enfermos, ordem e matrimônio), o estado de graça (isto é, estar na amizade de Deus, sem pecado mortal na consciência) é uma disposição para recebê-los licitamente. 

Como dissemos anteriormente, a recepção ilícita e indigna dos sacramentos constitui pecado de sacrilégio. E é dever dos que administram os sacramentos evitar o sacrilégio. Por isso, um sacerdote pode recusar a absolvição se nota com certeza que aquele que se confessa não está arrependido. Igualmente por isso o cânon 915 do Código de Direito Canônico determina que os sacerdotes recusem a sagrada comunhão, não apenas aos excomungados e interditados, mas também aos «que obstinadamente persistem no pecado grave manifesto», isto é, os chamados pecadores públicos. Os sacramentos são realidades sobrenaturais, são coisas sagradas e, por isso, não podem ser administrados aos que vivem publicamente numa situação de pecado grave, pelo menos enquanto não deem mostras igualmente públicas de arrependimento e conversão. 

É pela mesma razão que os que publicamente vivem como marido e mulher sem estar casados na Igreja não podem receber os sacramentos. Não é porque estejam excomungados, mas porque é de conhecimento público que lhes falta uma disposição necessária para recebê-los licitamente. De igual sorte, se é de público conhecimento que alguém se inscreveu num partido declaradamente comunista ou lhe prestou qualquer favor, ele também não pode ser admitido aos sacramentos. Quanto àqueles que publicam, divulgam ou lêem livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas, ou que escrevem neles, devem-se observar as modificações no direito canônico que apontamos mais acima, sempre dando ao próximo o benefício da dúvida e evitando a injustiça do julgamento temerário. 

Por outro lado, não se pode esquecer que a filiação a um partido declaradamente comunista não é o único pecado grave que se precisa abandonar para alguém ser admitido aos sacramentos. Só para ficar num único exemplo, também exclui da recepção dos sacramentos a prática da astrologia, isto é, a adivinhação de coisas futuras ou ocultas mediante a observação do lugar e movimento dos astros. Como claramente ensina o Catecismo da Igreja Católica, promulgado por S. João Paulo II: «A consulta aos horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e da sorte, os fenômenos de visão, o recurso a médiuns escondem uma vontade de poder sobre o tempo, sobre a história e finalmente sobre os homens, ao mesmo tempo que um desejo de ganhar para si os poderes ocultos. Estas práticas contradizem a honra e o respeito que, unidos ao amoroso temor, devemos exclusivamente a Deus» (n. 2116). Também o Primeiro Concílio de Toledo, que condenou as heresias dos gnósticos priscilianos, definiu o seguinte: «Si quis astrologiae vel mathesiae aestimat esse credendum, anathema sit», que podemos traduzir assim: “Se alguém julga que se deve crer na astrologia ou na numerologia, seja anátema!” 

Passemos agora ao comentário da quarta e última resposta do Decreto contra o Comunismo. Ela trata da excomunhão daqueles que professam a doutrina materialista e anticristã do comunismo. Como foi dito anteriormente, temos de considerar que o Decreto em questão é interpretativo e não constitutivo. Ele não visa a instituir novas normas, mas a esclarecer possíveis dúvidas sobre a doutrina da Igreja e a aplicação do direito canônico vigente na época. Assim sendo, a quarta resposta trata da possível inclusão dos comunistas no delito canônico de apostasia

Isso torna-se evidente pelo emprego das palavras «como apóstatas da fé católica», «tamquam apostatae a fide catholica», no texto original em latim. Os comunistas, segundo o Decreto, não incorrem em excomunhão na qualidade de comunistas, mas na qualidade de apóstatas da fé. E em que medida incorrem na qualidade de apóstatas da fé? Na medida em que «professam a doutrina materialista e anticristã do comunismo». A tradução brasileira do DENZINGER, inclusive, é menos precisa que o original latino, que fala em «communistarum doctrinam materialisticam et antichristianam» (doutrina materialista e anticristã “dos comunistas”, e não do comunismo). 

Para se compreender esse trecho é preciso primeiro entender o que seja um “apóstata da fé”. Conforme o cânon 751 do Código de Direito Canônico vigente, «apostasia é o repúdio total da fé cristã». Enquanto a heresia importa a negação de uma verdade da fé em particular (por exemplo, a presença real do Cristo na Eucaristia), a apostasia se caracteriza por uma rejeição de todas as verdades da fé em seu conjunto. Herege é o que escolhe entre as verdades da fé as que ele quer seguir; o apóstata é o que rejeita a todas. Ora, se alguém professa uma doutrina materialista (materialismo é a negação da existência de Deus e da imortalidade da alma) e anticristã (o anticristianismo, por definição, é o combate contra a fé cristã), evidentemente ele é um apóstata da fé católica, ou seja, alguém que rejeitou todas as verdades da fé em seu conjunto. 

Portanto, para incorrer na excomunhão mencionada no Decreto contra o Comunismo, não basta defender uma reforma política, por mais comunista que ela seja ou pareça ser. Não basta apoiar ou votar num partido declaradamente comunista. Não basta inscrever-se entre os filiados de um partido declaradamente comunista. Não basta nem mesmo autodeclarar-se publicamente comunista, em documento registrado em cartório. Para incorrer na excomunhão mencionada no Decreto contra o Comunismo é preciso professar «communistarum doctrinam materialisticam et antichristianam», a doutrina materialista e anticristã dos comunistas – ou seja, é preciso professar o materialismo dialético, negando a existência de Deus. Sem essa adesão ao materialismo, não há a excomunhão referida no Decreto

Esta, que acabamos de expor aqui, é exatamente a mesma interpretação que deram os canonistas e teólogos moralistas da época em que o Decreto contra o Comunismo foi publicado. Por exemplo, a 16ª edição, publicada em 1950, da Theologia moralis dos famosos padres redentoristas AERTNYS e DAMEN, em nota à página 758 do tomo II, fazendo referência ao Decreto do Santo Ofício contra o Comunismo, diz o seguinte: «Non cadunt sub hac excommunicatione simplices gregarii partium communistarum; non enim constituunt sectam apostaticam, vel haereticam, vel atheisticam, sed politicam» (“Não caem sob esta excomunhão os simples filiados aos partidos comunistas; estes, de fato, não constituem seita apostática, ou herética, ou ateísta, mas política”). Ou seja, de acordo com AERTNYS e DAMEN, aqueles que professam a doutrina materialista do comunismo incorrem em excomunhão por apostasia da fé, porém o mesmo não ocorre com os simples filiados do partido comunista, pois esse partido é uma associação de caráter antes político que religioso. 

Também o padre capuchinho Teodoro da Torre DEL GRECO, doutor em direito canônico, em sua Teologia Moral, publicada no Brasil em 1959, esposa o mesmo parecer: «A simples inscrição no partido comunista (especialmente pelo fato de melhor reivindicar os direitos dos operários) não constitui, por si, nenhuma apostasia, nem acarreta a excomunhão reservada “speciali modo”. Com isto não se afirma não seja a inscrição ao comunismo proibida pela Igreja; ao contrário, os católicos estão obrigados não só a não colaborarem em nenhum campo com o comunismo, mas a combatê-lo» (n. 115, pp. 130-1). Na página 808 da mesma obra, o canonista capuchinho explicita novamente o mesmo entendimento: «Aqueles que somente se inscrevem e apoiam o comunismo ou suas organizações (Juventude Comunista, União das Mulheres, Associação Pioneira etc.) pecam, mas não serão, por isto, considerados apóstatas, nem incorrem nesta censura»

Aliás, aos 27 de julho de 1949, L’Osservatore Romano, o jornal oficioso da Santa Sé, publicou um extenso editorial comentando o Decreto contra o Comunismo. Neste editorial, deu-se à excomunhão referida na quarta resposta do Decreto a mesma interpretação exposta agora nesta comunicação: «Incorrem “ipso facto” na excomunhão reservada de modo especial à Santa Sé os fiéis que professam a doutrina materialista e anticristã dos comunistas e sobretudo os que a defendem ou a propagam. O materialismo nega a existência de um Deus pessoal, a espiritualidade da alma, a liberdade da vontade e qualquer recompensa ou castigo depois desta vida. Quem professa essa doutrina, pelo próprio fato de professá-la, se destaca da comunidade e da fé cristã. É, portanto, um apóstata (cânon 1.325, § 2, do Código de Direito Canônico de 1917). Ora, o apóstata incorre na excomunhão “ipso facto” quando manifesta exteriormente essa sua apostasia, como faz aquele que professa o materialismo e, “a fortiori”, aquele que o defende ou o propaga. A resposta é claríssima. Por isso o Decreto não dá para ela nenhuma especial explicação. De outra parte, vê-se facilmente porque dizemos que esta [quarta] resposta é muito menos importante que a primeira. Não poucos católicos sustentam o comunismo com o seu sufrágio nas eleições, com seu dinheiro dado à imprensa comunista, com seu apoio nas discussões sociais ou políticas, sem querer com isso aderir à doutrina materialista e anticristã do comunismo. Por isso, estes não caem sob a excomunhão» (grifo nosso). 

E por que essa interpretação é a correta? Porque a excomunhão é uma pena eclesiástica e o cânon 18 do Código de Direito Canônico vigente determina o seguinte: «As leis que estabelecem pena ou limitam o livre exercício dos direitos ou contêm exceção à lei devem ser interpretadas estritamente». Esta regra de interpretação, embora esteja no Código de 1983, não é nova no direito canônico da Igreja. Ela procede do direito natural e igualmente constava do Corpus Juris Canonici da Idade Média. Trata-se da 15ª entre as regras do direito (regulae juris), postas no último título do Livro Sexto das Decretais, promulgado pelo papa Bonifácio IX: «Odia restringi et favores convenit ampliari» (“É preciso restringir tudo o que é odioso e ampliar tudo o que é favorável”). Conforme um intérprete do direito canônico anterior à codificação de 1917: «Todas as leis que concedem uma graça ou uma vantagem ou que dão mais liberdade para as convenções, para os contratos, etc., chamam-se leis favoráveis; pelo contrário, aquelas que restringem a liberdade ou que pronunciam penas, são consideradas leis odiosas. Portanto, se numa lei desta espécie se encontra alguma obscuridade, é preciso apegar-se à interpretação que torna esta lei menos odiosa. (...) O mesmo deve dizer-se a respeito das leis penais, que se devem restringir na sua significação mais estrita» (Msr. Anselmo TILLOY, Tractado Theorico e Pratico de Direito Canonico, tomo I, n. 319, editado em Viseu, Portugal, no ano de 1899, com aprovação eclesiástica da Santa Sé).

Como ao delito canônico de apostasia continua a ser cominada a pena eclesiástica de excomunhão latae sententiae pelo cânon 1.364 do Código de Direito Canônico vigente, promulgado pelo papa S. João Paulo II em 1983, a excomunhão referida pela quarta resposta do Decreto contra o Comunismo continua perfeitamente válida. Entretanto, como dissemos, tal excomunhão atinge apenas aos que professam a doutrina materialista e anticristã dos comunistas, ou seja, o materialismo dialético, negando a existência de Deus e do espírito. O que implica a excomunhão não é fato de alguém se declarar comunista (menos ainda o de ser declarado comunista pelos outros), mas a adesão ao materialismo e a negação da existência de Deus. Nesse sentido, o fiel católico que adere ao ateísmo de Ayn Rand ou Ludwig von Mises, incorre na mesmíssima excomunhão prevista para os comunistas que professam o materialismo dialético, «tamquam apostatae a fide catholica» (como apóstatas da fé católica). 

Embora hoje como na época do Decreto contra o Comunismo o delito de apostasia acarreta a pena de excomunhão latae sententiae, um detalhe necessita ser esclarecido. O Decreto fala textualmente em «excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica». No direito penal canônico vigente na época da publicação do Decreto, a apostasia era punida com excomunhão latae sententiae reservada de modo especial à Santa Sé. Isto significava que essa excomunhão apenas poderia ser levantada (absolvida) pelo papa ou por um sacerdote que obtivesse do papa a faculdade especial de levantá-las. No Código de Direito Canônico de 1983, a excomunhão por delito de apostasia deixou de ser reservada, de modo que hoje pode ser desligada por qualquer sacerdote habilitado para remitir penas eclesiásticas

Ex positis, nossa conclusão é que a excomunhão referida pela quarta resposta do Decreto contra o Comunismo, publicado pela Congregação do Santo Ofício no dia 1º de julho de 1949, ainda permanece válida, porquanto o cânon 1.364 do Código de Direito Canônico vigente impõe que o delito canônico de apostasia seja punido com excomunhão latae sententiae. Entretanto, tal excomunhão não atinge indiscriminadamente os que estejam inscritos em partidos comunistas ou que sejam seus eleitores, mas apenas aqueles que professarem, defenderem ou propagarem o materialismo dialético, negando a existência de Deus e a imortalidade da alma. 

Sed contra (em contrário). Santo Tomás de Aquino, em seu método dialético próprio da escolástica, ao abordar determinada questão, não se contentava em demonstrar a sua tese, mas também se dava ao trabalho de refutar explicitamente as objeções contrárias. Seguindo com humildade o seu exemplo, examinemos agora a tese diretamente contrária à que demonstramos e defendemos: a tese de que o Decreto contra o Comunismo não foi simplesmente interpretativo, mas introduziu uma excomunhão especial contra os comunistas, que atinge não apenas aqueles que se declaram formalmente como tais, como também aqueles que apoiam ou votam em partidos políticos de esquerda, declarem-se estes comunistas ou não. Ora, se tal interpretação do Decreto for a correta, então forçosamente se deverá concluir que a referida excomunhão deixou de existir, pois o cânon 6 do atual Código de Direito Canônico expressamente revogou «quaisquer leis penais, universais ou particulares, dadas pela Sé Apostólica, a não ser que sejam acolhidas neste Código»

Por conseguinte, ou a excomunhão prevista na quarta resposta do Decreto contra o Comunismo é que corresponde ao delito canônico de apostasia (e, nesse caso, ela apenas atinge os que professam o materialismo dialético, e não todos os que apoiam o comunismo), ou então essa excomunhão teria maior extensão, mas foi revogada pela entrada em vigor do Código de Direito Canônico de 1983. Tertium non datur (não há terceira opção). 

___________ 

Rodrigo R. Pedroso é advogado, mestrando em filosofia, membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (UJUCASP) e procurador da Universidade de São Paulo (USP).



Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Evangélico precisa receber o Batismo quando se torna católico?

Corinne SIMON/CIRIC


O pe. Cido explica em quais condições um batismo não-católico é inválido

Um evangélico precisa receber o Batismo quando se torna católico? Esta indagação foi apresentada ao pe. Cido Pereira, que mantém uma coluna de perguntas e respostas no portal O São Paulo, da arquidiocese paulistana.

A Dora, de Guarulhos, SP, está com a seguinte dúvida: 
‘O batizado em igreja evangélica é válido perante as leis de Deus ou é preciso ser batizado na Católica?'”.

Eis a resposta do pe. Cido:

“Dora, boa pergunta a sua. 
Para respondê-la, temos que lembrar o que Jesus deixou antes de voltar para o Pai. Jesus disse:
Ide e fazei discípulos meus todos os povos, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo’
Então, minha irmã, toda pessoa que for batizada com estas palavras é batizada, não importando a Igreja a que pertença.

Nos casos de conversão de uma Igreja cristã não católica, é preciso saber quais as palavras que a Igreja não católica usa na celebração do Batismo. 
Se forem as palavras que Jesus disse, não há por que batizar de novo. 
Basta que a pessoa faça uma profissão de fé católica e pronto. 
Vai viver como católico, membro da Igreja, discípulo de Jesus”.

O pe. Cido prosseguiu:

“Existem igrejas evangélicas que batizam, por exemplo, ‘em nome de Jesus’. 
Este Batismo não é válido, e, na conversão de uma pessoa batizada assim, o batizado deve ser refeito.

É uma pena que, nas mudanças de uma pessoa da nossa Igreja Católica para uma igreja evangélica, essa Igreja não aceite o Batismo da nossa, com o argumento de que o Batismo católico não é válido. 
Isso, a meu ver, é um pecado, porque se nega que Deus possa fazer seu filho uma criança
Falta religião nesse procedimento.

Guarde no seu coração, Dora: há uma só fé, um só Batismo, um só Senhor, Jesus Cristo, nosso Salvador.

A nossa Igreja Católica Apostólica Romana tem uma lista das Igrejas Evangélicas que usam a fórmula trinitária querida por Jesus
Mas não basta ter sido batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. 
É preciso aprofundar e conhecer as verdades de nossa fé. 
O irmão que vem de outra Igreja precisa ser iniciado nas verdades da fé católica”.

Fonte: Aletéia

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

segunda-feira, 25 de julho de 2022

Você é pró-vida ou é só contra o aborto? – o alerta do Papa


Primeiya | Shutterstock


Conheço e sou fiel a toda a doutrina social católica ou apenas a uma parte?

Ao declararem que o ser humano é imagem e semelhança de Deus, as Sagradas Escrituras vincularam o compromisso religioso ao compromisso social de cuidar da vida.

Dos cinco pecados que bradam aos céus, lembrados no Catecismo da Igreja Católica, parágrafo 1867, quatro são de natureza social: o homicídio, a opressão aos pobres, o descaso com os vulneráveis e o não pagar o justo salário. No Novo Testamento, Jesus vinculou a salvação ao compromisso com os pobres e a condenação àqueles que se omitem (cf. Mt 25,31-46). Esse compromisso social não é restrito a atos pessoais, mas implica políticas públicas. “A política é a mais alta forma de caridade. Todos os cristãos são obrigados a se empenhar politicamente”, lembrou Pio XI, num discurso aos jovens, em 1927.

O tema da dignidade da vida humana deve ser prioridade ao pensar política. Mas há uma incoerência disseminada em nosso meio e que chamou a atenção do Papa Francisco:

 “É nocivo e ideológico o erro das pessoas que vivem suspeitando do compromisso social dos outros, considerando-o algo superficial, mundano, secularizado, imanentista, comunista, populista; ou então relativizam-no como se houvesse outras coisas mais importantes, como se interessasse apenas uma determinada ética ou um arrazoado que eles defendem. 
A defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada (…) mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão. 
Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo. (…) 
Alguns católicos afirmam que é um tema secundário relativamente aos temas ‘sérios’ da bioética. 
Que fale assim um político preocupado com os seus sucessos, talvez se possa chegar a compreender; mas não um cristão’’ 
(exortação apostólica Gaudete et exsultate, 100-102).

A constituição pastoral Gaudium et spes, 27, enfatizou que TUDO que se opõe à vida é infame e ofende a honra devida ao Criador. É inconcebível que um católico escolha apenas um tema e se omita em outros, se levante contra políticas que ameaçam um lado, mas não se move com igual força diante de políticas ou realidades que prejudicam outras esferas da vida. Se estamos assim, é sinal de que fomos envolvidos pela nociva ideologia que o Papa Francisco denunciou.

Nossa luta deve ser por políticas públicas que promovam a vida humana na totalidade, nosso combate deve ser contra a política/realidade de morte que ameaça a dignidade da vida humana em todas as frentes, é o caso da miséria, da fome, do desemprego, do ódio, do homicídio, do aborto, das novas formas de racismo, escravidão, migração e preconceito, do descaso com a saúde pública, com a educação, com a vida indígena e amazônica, também os ataques e o descaso com o meio ambiente que atingem diretamente o homem que depende da Criação para viver. Essa é a totalidade da Doutrina Social da Igreja.

A atuação política do cristão não pode ceder à mesquinharia de escolher um tema e se omitir de outros. Ao escolher o voto, todas as circunstâncias devem ser levadas em conta e serem exigidas daqueles que apresentam seus pleitos.

Precisamos fazer um exame de consciência e avaliarmos nossa postura como cristãos eleitores e políticos. 

Sou realmente pró-vida ou só sou contra um ou outro aspecto? 

Conheço e sou fiel a toda a doutrina social católica ou apenas a uma parte?

Fonte: Aletéia

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Saiba como conseguir a indulgência plenária no próximo Dia dos Avós

De Visu | Shutterstock

Neste ano celebraremos pela 2ª vez o Dia Mundial dos Avós e do Idoso o Papa Francisco traz belas novidades

Quer saber como conseguir a indulgência plenária no próximo Dia dos Avós?

Neste ano celebraremos pela 2ª vez o Dia Mundial dos Avós e do Idoso – e o Papa Francisco traz belas novidades: ele concedeu a indulgência plenária a quem participar da celebração, em 24 de julho.

A informação foi divulgada neste dia 30 de maio pela Penitenciaria Apostólica da Santa Sé, conduzida pelo cardeal Mauro Piacenza. Segundo o decreto divulgado, a indulgência será concedida:

“…aos avós, idosos e todos os fiéis que, motivados pelo verdadeiro espírito de penitência e caridade, participarem no próximo dia 24 de julho da celebração solene que o Papa Francisco presidirá na basílica de São Pedro, bem como de diferentes celebrações que serão realizadas em todo o mundo [em relação com esta jornada].

A indulgência plenária será concedida, no mesmo dia, também aos fiéis que dedicarem tempo adequado a visitar, presencial ou virtualmente, “os irmãos idosos necessitados ou em dificuldade (doentes, abandonados ou inválidos)”.

No caso dos idosos doentes e de todos os “impossibilitados de saírem de casa por motivos graves”, eles poderão unir-se espiritualmente às celebrações sagradas da jornada, “oferecendo ao Deus Misericordioso suas orações, dores e os sofrimentos de sua vida, especialmente enquanto as palavras do Pontífice e as várias celebrações estiverem sendo transmitidas pelos meios de comunicação”.

A Santa Sé pede aos padres que sejam “generosos e disponíveis para confessar os fiéis, já que, para se obter uma indulgência plenária, é preciso seguir as condições habituais:

Confissão Sacramental, 
Comunhão Eucarística, 
Oração pelas intenções do Papa, 
Cumprimento das condições específicas para receber a indulgência oferecida.

Sobre o Dia Mundial dos Avós e do Idoso

O Papa Francisco estabeleceu essa data em 2021. Ela será celebrada todo quarto domingo de julho, “perto da comemoração de São Joaquim e Santa Ana, avós de Jesus”.

O propósito é motivar o encontro e a convivência entre netos e avós para “guardar as raízes e transmiti-las”.

Sobre as indulgências plenárias

Trata-se da remissão de toda pena temporal merecida pelo pecado, de modo que nenhuma outra expiação seja necessária no purgatório. O que quer dizer isso?

Acontece que, no sacramento da confissão, a absolvição recebida elimina a culpa do pecado e a pena eterna que o pecado mortal acarretaria, mas não elimina a pena temporal exigida pela justiça divina: ela permanece e precisa ser satisfeita nesta vida ou no purgatório.

O que a indulgência plenária faz é eliminar a necessidade da pena temporal no purgatório, devolvendo a alma ao estado de pureza do dia do batismo. Dito de outra forma: se um fiel morresse logo após receber a indulgência plenária, iria diretamente para o céu.

A Igreja tem autoridade para oferecer indulgências plenárias porque a recebeu diretamente de Cristo, que declarou ao primeiro Papa, São Pedro, que “tudo o que ligares na terra será ligado no céu”.

Fonte: Aletéia

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, rogai por nós!

sábado, 16 de julho de 2022

Nossa Senhora do Carmo nos deu seu “cheirinho” pelo santo escapulário

© Jeffrey Bruno / ALETEIA
Imagem ilustrativa


Através do escapulário ela quer que nós, quando nos sentirmos amedrontados e ameaçados, nos apeguemos a esse sinal, pedindo: “Socorra-me, Mãe". 
E qual mãe não atende a um filho?

Écom grande alegria que, neste mês, festejamos Nossa Senhora do Carmo, Mãe do Santo Escapulário. “Carmo” vem do Monte Carmelo e é citada com muita clareza no Antigo Testamento, quando o profeta Elias subiu esse Monte e lá rezou e suplicou pela chuva, para cessar a grande seca que os assolava. Na sétima vez que o servo foi ao topo, avistou uma pequena nuvem no horizonte, e mandou dizer ao Rei Acab que atrelasse os cavalos no carro e descesse para que a chuva não o detivesse (cf. 1Rs 18,41-46).

Lá começa a espiritualidade, uma nuvenzinha do tamanho de uma mão humana que para muitos não significaria nada, mas para Elias que tinha fé, era Deus agindo. Muito cedo na patrística, os santos padres viram naquela cena a Virgem Maria. Para o povo de Israel, naquela ocasião veio a chuva depois de uma grande seca e, sobre Maria, a pequena nuvenzinha de Deus também ocasionou a maior de todas as chuvas, água viva trazida por Jesus Cristo, o Bendito fruto do Seu ventre.

Dificuldades e perseguições

Depois o Monte Carmelo foi meio esquecido, apesar de ser sempre um lugar de visitação, de recolhimento, de contemplação e o lugar do grande profeta Elias. Até que no século XII, tempo das Cruzadas na Idade Média, chegou ao Monte um grupo de eremitas, que lá se dedicaram à oração no recolhimento, num estilo de vida humilde e simples. Eles construíram uma pequena capela em homenagem à Nossa Senhora já no primeiro século.

Devido a perseguição aos cristãos na Terra Santa, e para fugir dos mulçumanos, o grupo de eremitas que vivia no Monte Carmelo foi obrigado a buscar refúgio na Europa. Ao chegarem na Inglaterra, encontraram Simão Stock, que também era eremita e se juntou a eles.

Outras dificuldades e perseguições externas e internas vieram. Simão Stock suplicou à Virgem Maria um sinal de proteção contra os inimigos da fé. Eis que, no momento de prece, ele teve uma visão de Nossa Senhora, que lhe deu um escapulário como promessa e sinal de proteção para todos aqueles que o usassem: 

“Ela lhe disse: 
‘Recebe, filho amado, este escapulário de tua Ordem, como sinal distintivo e a marca do privilégio que eu obtive para ti e para os filhos do Carmelo. 
Quem morrer revestido com ele será preservado do fogo eterno. 
Ele é sinal de salvação, defesa nos perigos, aliança de paz e de uma proteção sempiterna!’”.

A partir dali a Ordem dos Carmelitas, que corria o risco de se extinguir, se fortaleceu e se propagou pelo mundo inteiro. Muitos importantes santos tiveram a espiritualidade carmelita, entre eles: Santa Teresa d’Ávila, Santa Teresa de Lisieux, Santa Teresa Benedita da Cruz e São João da Cruz.

Escapulário, um sinal

O santo escapulário é um sinal, a nuvenzinha para quem tem fé. É um pedaço do manto de Maria. Um sinal da mãe. Quantas crianças têm seu cheirinho, um paninho para dormir que, todos sabemos pela psicologia atual, é um porto seguro dos pequenos. É o cheiro da mãe, do berço, do aconchego, da confiança. Eu gosto de pensar que Nossa Senhora do Carmo nos deu seu cheirinho pelo santo escapulário, para que todos nós, quando nos sentirmos amedrontados e ameaçados, nos apeguemos a esse sinal pedindo: “Socorra-me Mãe. Sede-me propicia Mãe”. Me diga qual mãe não atende a um filho? Qual mãe não o socorre? Imagine Nossa Senhora.

Gosto de pensar assim, mas sei das implicações do uso do escapulário. Qualquer que seja a forma ou material, deve ter de um lado a imagem de Nossa Senhora do Carmo e do outro o Sagrado Coração de Jesus, para nos colocar no mistério de Nossa Senhora em Jesus Cristo. Exatamente para mostrar essa devoção a Cristo, por Maria.

O Escapulário é um sacramental, vem da palavra escapula, que também se refere para ser usado no pescoço. Nos lembra que é uma proteção, mas também um avental. É revestir-se para servir. São duas dimensões de uma mesma realidade: de um lado a Mãe que protege e, do outro, lembra sempre o eco daquilo que Nossa Senhora disse nas Bodas de Caná: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5).

Então, usemos esse avental para servir a Deus, a Igreja e aos mais pobres. Para fazer como fez Maria: em tudo a vontade do Senhor.

Fonte: Aletéia

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Problemas na educação dos filhos? Estes santos podem ajudar

MYCHELE DANIAU | AFP

A santidade de Zélia e Luís, pais de Santa Teresinha, se adapta a todos os tempos, a todas as situações e condições de vida

Descobrir a vida de Zélia e Luís, os pais de Santa Teresinha, é perceber que seus exemplos ainda nos falam hoje. De fato, cada um de nós poderá se encontrar em um ou outro aspecto de suas vidas: desejo de consagrar-se a Deus, casamento tardio, incertezas sobre o futuro e a educação dos filhos, preocupações econômicas e profissionais, preocupações devido aos problemas políticos do país, câncer de mama para Zélia, doença que causa graves transtornos mentais para Luís em sua velhice… Enfim, a santidade de Zélia e Luís é uma santidade que se adapta a todos os tempos, a todas as situações e a todas as condições de vida.

Em meio a múltiplas preocupações profissionais, os dois souberam comunicar os primeiros ensinamentos da fé aos seus filhos, desde a mais tenra infância. Eles foram os primeiros mestres a iniciar seus filhos na oração, no amor e no conhecimento de Deus, mostrando que rezavam, sozinhos e juntos, acompanhando-os à Missa e às visitas ao Santíssimo Sacramento.

O que fazer?

No Evangelho, os discípulos de João Batista lhe perguntam: “O que devemos fazer?” (Lucas 3, 10) e os discípulos de Jesus lhe pedem: ensina-nos a orar” (Lucas 11, 1). Eis uma pergunta e um pedido que abrem o caminho da educação, do amor na família, ao próximo e uma profunda relação de amizade entre o Céu e a terra.

Não se trata primeiro de entrar nas fórmulas, de recitar orações, mas de avançar em uma relação para aprofundá-la.Basta olhar para ele para saber como rezam os santos”, disse Santa Teresinha ao falar de seu pai. Se educar significa conduzir, elevar-se para além de si mesmo, os Santos pais de Santa Teresinha nos marcam o caminho pois deram o testemunho de uma “educação cuidadosa” de seus filhos para que tenham sucesso nesta terra, sem negligenciar uma educação que os estimule a se tornarem santos.

Educação cuidadosa dos filhos

Esses foram os cinco passos seguidos pela família Martin:

1. Viver uma relação de amor na terra e com o Céu;

2. Disponibilizar-se ao dialogar;

3. Educar em autonomia pessoal e respeito mútuo;

4. Atravessar as provas juntos com a ajuda do Céu;

5. Acolher as confidências em um caminho de comunhão humana e espiritual.

Sentar-se para “encarnar” nossa oração é buscar viver um relacionamento autêntico com o Céu. Santa Zélia e São Luís nos ajudam a olhar para as diferentes facetas da educação e a responder melhor à pergunta que todos nós nos fazemos pelo menos uma vez na vida: “o que devemos fazer?”

Enfim, educar para além de si mesmo a fim de que seus filhos tenham sucesso nesta terra e os encorajar no caminho da santidade, esse é o principal ensinamento deste santo casal.

Débora Moreira Araújo, pelo Hozana

Fonte: Aletéia

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Por que São Bento é invocado contra o mal?

Public Domain


Ele mesmo se livrou de uma tentativa de assassinato quando foi abade em um convento


Nascido na Itália no ano de 480, São Bento estudou Direito em Roma, mas decidiu consagrar sua vida a Deus. Aos 40 anos, fundou o primeiro mosteiro no Monte Cassino.

Propôs as regras para a vida monástica, sendo a mais conhecida delas “Ora et Labora” (Reza e Trabalha). Durante sua vida, realizou diversos milagres e muitos exorcismos, levando os fiéis à conversão.

São Bento é comumente invocado na luta contra o mal. Ele mesmo se livrou de uma tentativa de assassinato enquanto foi abade em um convento. Os religiosos que lá viviam ficaram insatisfeitos com o rigor de suas regras e planejavam matá-lo colocando veneno em sua bebida. Assim que a taça com vinho foi servida, São Bento fez o sinal da cruz para abençoar a bebida. No mesmo momento, a taça se quebrou.

Ele morreu em 547, aos 67 anos. Foi canonizado no ano de 1220.

A medalha

Não se sabe ao certo quando surgiu a medalha de São Bento, mas ela passou a ser difundida no século 17. 


De um lado, traz a imagem de São Bento com a cruz e o livro das regras. 
Do outro uma cruz com a inscrição C S P B (Cruz do Santo Pai Bento). 


Na haste vertical, estão as iniciais C S S M L: 

“A cruz sagrada seja a minha luz”

Na haste horizontal, N D S M D: 

“Não seja o dragão o meu guia”

No alto da cruz, a palavra PAX (Paz), que é lema da ordem de São Bento. 
E as iniciais V R S N S M V: 

“Retira-te, satanás, nunca me aconselhes coisas vãs!” 

S M Q L I V B: 

“É mau o que me ofereces, bebe tu mesmo os teus venenos!”.

Proteção contra o mal

Na devoção popular, São Bento é invocado para o combate contra as forças do mal. 

A medalha não deve ser usada como um amuleto da sorte, mas deve ser um sinal de fé.

Muitas famílias costumam rezar a oração de São Bento, especialmente no dia dedicado a ele, 11 de julho. Com a medalha nas mãos, fazem a oração em frente a porta da casa, pedindo a proteção para o lar, e também nas portas dos quartos, para que todos os que ali moram sejam livrados das forças do maligno.

Além da oração, outra jaculatória bastante usada é a seguinte:

“São Bento, água benta

Jesus Cristo no altar

que todo mal saia desta casa

para eu poder morar”.

Para empresas, pode-se rezar da seguinte forma:

“São Bento, água benta

Jesus Cristo no altar

Que todo mal saia desta empresa

Para que todos possam trabalhar”.

Fonte: Aletéia

São Bento, rogai por nós!

domingo, 10 de julho de 2022

O Cristo politicamente incorreto

Bernardino Mei | Public Domain


"Quem fica dizendo por aí que Jesus só pregou o amor e que condenar o pecado é discriminação, nunca leu a Bíblia ou a leu de cabeça para baixo"

O “Cristo politicamente incorreto” foi o tema de um comentário escrito e publicado pelo pe. Gabriel Vila Verde em sua rede social:

“Quem fica dizendo por aí que Jesus só pregou o amor e que condenar o pecado é discriminação, nunca leu a Bíblia ou a leu de cabeça para baixo. 
O próprio Jesus condena o pecado e convida todos à conversão!
Para a adúltera que seria apedrejada, Ele disse ‘vá e não tornes a pecar’
A Zaqueu arrependido, que decidiu devolver o que roubou, Ele disse ‘agora a salvação entrou nesta casa’
Aos que deixam a esposa por outra, Ele chamou de adúlteros. 
Aos cambistas do Templo, que profanavam o lugar santo, deu-lhes uma boa surra de chicote. Aos que não queriam acreditar n’Ele, chamou-os de ‘filhos do diabo'”.

O sacerdote concluiu:

“Este é o Cristo politicamente incorreto, o Cristo dos evangelhos, que no último dia irá separar o joio do trigo!
Logo, essa historinha de que devemos pregar o amor e deixar de lado a responsabilidade da conversão e da santidade é palhaçada do demônio. 
Quem justifica o pecado está advogando em causa própria e não fala em nome de Cristo. 
É lobo em pele de cordeiro. 
Fique atento para não ser enganado!”


Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Suprema Corte americana decide que técnico pode rezar em campo

First Liberty

Na sentença, os juízes entenderam que as orações particulares do técnico de futebol de uma escola pública estavam protegidas pela Constituição dos EUA

A Suprema Corte dos Estados Unidos entendeu que uma escola pública americana violou os direitos de um treinador de futebol do ensino médio ao puni-lo por rezar em campo após os jogos.

Por seis votos a três, a Suprema Corte decidiu que a expressão religiosa é protegida pelas cláusulas de livre exercício e de livre expressão da Primeira Emenda da Constituição.

“A Constituição e o melhor de nossas tradições aconselham respeito mútuo e tolerância, não censura e supressão, tanto para opiniões religiosas quanto não religiosas”, escreveu um dos juízes.

O processo

As orações pós-jogo do técnico Joseph Kennedy começaram em 2008, quando ele se ajoelhava sozinho em campo para agradecer a Deus após o fim de cada jogo. Mais tarde, alguns dos jogadores do time começaram a se juntar a ele. Anos depois, em 2015, a escola determinou que ele não podia rezar em campo. Os diretores lhe disseram também para evitar qualquer “conversa motivacional com os estudantes que incluísse expressão religiosa, incluindo a oração”.

Após concordar com o pedido de acabar com as orações pós-jogo, o treinador mudou de ideia e, através de um advogado, disse que desejava continuar a tradição de forma particular e pessoal, por causa de “crenças religiosas sinceras”. Depois de um jogo no qual ele rezou silenciosamente no campo, ao qual se juntaram outros adultos, a escola o colocou em licença administrativa e, depois disso, não renovou o contrato de emprego com ele.

Kennedy, então, processou a escola por violar seu direito à liberdade de expressão e ao livre exercício de sua fé. A Suprema Corte dos EUA concordou em julgar o caso depois que Kennedy perdeu nos tribunais inferiores.

Proteção à expressão religiosa

Os juízes da Suprema Corte enfatizaram que “o respeito às expressões religiosas é indispensável à vida em uma República livre e diversificada – quer essas expressões ocorram em um santuário ou em um campo, e quer se manifestem através da palavra falada ou de uma cabeça arqueada”.

A decisão prossegue:

“Aqui, uma entidade governamental procurou punir um indivíduo por se envolver em uma breve, silenciosa e pessoal observância religiosa duplamente protegida pelas Cláusulas de Exercício Livre e de Liberdade de Expressão da Primeira Emenda (…). 
A Constituição não ordena nem tolera esse tipo de discriminação”.

Fonte: Aletéia

Não tenhamos medo de viver a nossa fé!
Sejamos testesmunhos no Mundo!

Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

domingo, 3 de julho de 2022

Missa: inclinar-se ou olhar para cima durante a elevação da hóstia e do cálice?

Pascal Deloche | Godong

Os gestos e atitudes do povo na Santa Missa devem refletir o amor e o respeito a Deus

Durante a Missa, a consagração do pão e do vinho é marcada pela elevação da hóstia e do cálice. Muitas vezes, este momento também é acompanhado pelo toque solene dos sinos.

Além disso, há um curto período de silêncio quando o sacerdote eleva a hóstia e o cálice para que todos possam ver. Após cada elevação, o padre faz uma genuflexão.

Inclinar-se ou olhar para cima durante a elevação?

Depois que a elevação da hóstia e do cálice foram introduzidas na Missa, no século 13, uma das respostas mais comuns do povo era abaixar a cabeça, em sinal de reverência. Um gesto para reconhecer a Presença Real de Jesus na Eucaristia.

No século 16, este gesto foi prescrito por vários concílios e tornou-se uma resposta-padrão.

No entanto, São Pio X sugeriu uma resposta diferente, encorajando os fiéis a olhar para cima e adorar a hóstia e o cálice eucarístico.

São Pio X também determinou uma indulgência a quem dissesse: “Meu Senhor e Meu Deus” enquanto contemplasse o Santíssimo Sacramento durante o momento da elevação ou quando quando o Santíssimo estivesse exposto no altar.

De fato, muitos católicos rezam esta oração silenciosamente enquanto contemplam a hóstia elevada, e rezam “Meu Jesus, misericórdia” na elevação do cálice.

A recomendação é que inclinemos nossa cabeça para baixo apenas quando o padre faz a genuflexão, após cada elevação.

A Instrução Geral do Missal Romano afirma:

“[Os fiéis] estão de joelhos durante a consagração, exceto se razões de saúde, a estreiteza do lugar, o grande número dos presentes ou outros motivos razoáveis a isso obstarem. Aqueles, porém, que não estão de joelhos durante a consagração, fazem uma inclinação profunda enquanto o sacerdote genuflecte após a consagração.”
(IGMR, 43)

A Instrução também recomenda que:

“Para se conseguir a uniformidade nos gestos e atitudes do corpo na celebração, os fiéis devem obedecer às indicações que, no decurso da mesma, lhes forem dadas pelo diácono, por um ministro leigo ou pelo sacerdote, de acordo com o que está estabelecido nos livros litúrgicos.”

Enfim, os gestos de olhar para cima na elevação da hóstia e do cálice e depois se inclinar devem ser feitos com fé e devem levar a um aumento do amor a Deus.

Fonte: Aletéia

Obra Indulgenciada: a quem dissesse: “Meu Senhor e Meu Deus” enquanto contemplasse o Santíssimo Sacramento durante o momento da elevação ou quando quando o Santíssimo estivesse exposto no altar.

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Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!

sábado, 2 de julho de 2022

CARTA APOSTÓLICA DESIDERIO DESIDERAVI

 CARTA APOSTÓLICA


DO SANTO PADRE
FRANCISCO

AOS BISPOS, AOS SACERDOTES
E AOS DIÁCONOS,
PARA AS PESSOAS CONSAGRADAS
E A TODOS OS LEIGOS FIÉIS

SOBRE A FORMAÇÃO LITÚRGICA
DO POVO DE DEUS

Eu ansiava pelo desejo
comer esta Páscoa com você
antes que eu sofra 
(Lc 22:15)

1. Caros irmãos e irmãs:

Com esta carta desejo chegar a todos – depois de ter escrito aos Bispos após a publicação do Motu Proprio Traditionis Custódios – para partilhar convosco algumas reflexões sobre a Liturgia, dimensão fundamental para a vida da Igreja. O assunto é muito extenso e merece cuidadosa consideração em todos os seus aspectos: no entanto, com este escrito não pretendo tratar o assunto de forma exaustiva. Quero simplesmente oferecer alguns elementos de reflexão para contemplar a beleza e a verdade da celebração cristã.

A Liturgia: o “hoje” da história da salvação

2"Desejei ardentemente comer convosco esta páscoa, antes de padecer" (Lc 22,15) As palavras de Jesus com as quais começa o relato da Última Ceia são o meio pelo qual nos é dada a admirável possibilidade de vislumbrar a profundidade do amor das Pessoas da Santíssima Trindade para conosco.

3. Pedro e João foram enviados para preparar o necessário para poder comer a Páscoa, mas, olhando bem, toda a criação, toda a história – que finalmente estava prestes a se revelar como história da salvação – é uma grande preparação para essa Ceia. Pedro e os demais estão naquela mesa, inconscientes e ao mesmo tempo necessários: todo presente, para ser tal, deve ter alguém disposto a recebê-lo. Neste caso, a desproporção entre a imensidão do dom e a pequenez de quem o recebe é infinita e não pode deixar de nos surpreender. No entanto – pela misericórdia do Senhor – o dom é confiado aos Apóstolos para que seja levado a todos os homens.

4. Ninguém ganhou lugar naquela Ceia, todos foram convidados, ou melhor, atraídos pelo desejo ardente que Jesus tem de comer aquela Páscoa com eles: Ele sabe que é o Cordeiro daquela Páscoa, ele sabe que é a Páscoa. Esta é a novidade absoluta daquela Ceia, a única e verdadeira novidade da história, que a torna única e, portanto, “última”, irrepetível. No entanto, seu desejo infinito de restabelecer aquela comunhão conosco, que foi e continua sendo seu projeto original, não será satisfeito até que todo homem, de toda tribo, língua, povo e nação (Ap 5,9) tenha comido seu Corpo e bebido seu Sangue: portanto, essa mesma Ceia estará presente na celebração da Eucaristia até seu retorno.

5O mundo ainda não sabe, mas todos estão convidados para as bodas do Cordeiro (Ap 19,9). A única coisa necessária para ter acesso é o vestido nupcial da  que vem da escuta da Sua Palavra (cf. Rm 10,17): a Igreja o faz à medida, com a brancura de uma roupa lavada no Sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,14). Não devemos ter um momento de descanso, sabendo que nem todos receberam ainda o convite para a Ceia, ou que outros a esqueceram ou perderam nos tortuosos caminhos da vida humana. Por isso, disse que “sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, estilos, horários, linguagem e todas as estruturas eclesiais se tornem um canal adequado para a evangelização do mundo atual e não para o auto- preservação” (Evangelii gaudium, n. 27): para que todos possam sentar-se à ceia sacrificial do Cordeiro e viver dEle.

6. Antes da nossa resposta ao seu convite – muito antes – há o seu desejo por nós: podemos até não estar cientes disso, mas cada vez que vamos à Missa, a razão principal é porque somos atraídos pelo seu desejo por nós. De nossa parte, a resposta possível, a ascese mais exigente é, como sempre, entregar-se ao seu amor, nos deixarmos atrair por Ele. Certamente, a nossa comunhão com o Corpo e Sangue de Cristo foi desejada por Ele na Última Ceia.

7. O conteúdo do Pão partido é a cruz de Jesus, seu sacrifício em amorosa obediência ao Pai. Se não tivéssemos a Última Ceia, ou seja, a antecipação ritual de sua morte, não teríamos podido compreender como a execução de sua sentença de morte poderia ser o ato perfeito e agradável de adoração ao Pai, o único verdadeiro ato de adoração. Poucas horas depois, os Apóstolos teriam podido ver na cruz de Jesus, se tivessem suportado o seu peso, o que significava “corpo entregue”“sangue derramado”: ​​e é o que recordamos em cada Eucaristia. Quando ele volta, ressuscitado dos mortos, para partir o pão para os discípulos de Emaús e sua família, que mais uma vez pescaram peixes e não homens, no lago da Galiléia, aquele gesto abre-lhes os olhos, cura-os da cegueira. o horror da cruz, tornando-os capazes de “ver” o Ressuscitado, de crer na Ressurreição.

8. Se tivéssemos chegado a Jerusalém depois de Pentecostes e tivéssemos sentido o desejo não só de ter notícias de Jesus de Nazaré, mas de reencontrá-lo, não teríamos outra possibilidade senão buscar os seus para ouvir suas palavras e ver seus gestos, mais vivos do que nunca. Não teríamos outra possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele a não ser na comunidade que celebra. Por isso, a Igreja sempre guardou, como seu tesouro mais precioso, o mandato do Senhor: “fazei isto em memória de mim”.

9Desde o início, a Igreja teve consciência de que não era uma representação, nem mesmo sagrada, da Ceia do Senhor: não teria sentido e ninguém teria pensado em "encená-la" - ainda mais sob o olhar de Maria, a Mãe do Senhor – aquele momento exaltado na vida do Mestre. Desde o início, a Igreja compreendeu, iluminada pelo Espírito Santo, que o que era visível em Jesus, o que podia ser visto com os olhos e tocado com as mãos, suas palavras e seus gestos, a concretude do Verbo Encarnado, passou à celebração dos sacramentos.

A Liturgia: lugar de encontro com Cristo

10. Aqui está toda a poderosa beleza da Liturgia. Se a Ressurreição fosse para nós um conceito, uma ideia, um pensamento; Se o Ressuscitado fosse para nós a memória da memória dos outros, tão autoritários como os Apóstolos, se não nos fosse dada também a possibilidade de um verdadeiro encontro com Ele, seria como declarar consumada a novidade do Verbo feito carne. Por outro lado, a Encarnação, além de ser o único evento novo conhecido na história, é também o método que a Santíssima Trindade escolheu para nos abrir o caminho da comunhão. A fé cristã ou é um encontro vivo com Ele, ou não é.

11. A Liturgia nos garante a possibilidade de tal encontro. Uma vaga lembrança da Última Ceia não nos serve, precisamos estar presentes naquela Ceia, poder ouvir sua voz, comer seu Corpo e beber seu Sangue: precisamos Dele. Na Eucaristia e em todos os Sacramentos são garantidas a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e ser alcançados pelo poder de sua Páscoa. O poder salvífico do sacrifício de Jesus, de cada uma de suas palavras, de cada um de seus gestos, olhar, sentir, chega até nós na celebração dos Sacramentos. Eu sou Nicodemos e a samaritana, o endemoninhado de Cafarnaum e o paralítico da casa de Pedro, o pecador perdoado e a hemorroida, a filha de Jairo e o cego de Jericó, Zaqueu e Lázaro; o ladrão e Pedro, perdoado. O Senhor Jesus que imolou, não morre mais; e sacrificados, vivam para sempre, continuem a nos perdoar, a nos curar e a nos salvar com o poder dos Sacramentos. Pela encarnação, é a forma concreta com que ele nos ama; É a maneira pela qual ele sacia aquela sede por nós que ele declarou na cruz (Jo 19,28).

12. O nosso primeiro encontro com a sua Páscoa é o acontecimento que marca a vida de todos nós, crentes em Cristo: o nosso baptismo. Não é uma adesão mental ao seu pensamento ou submissão a um código de comportamento imposto por ele: é a imersão em sua paixão, morte, ressurreição e ascensão. Não é um gesto mágico: a magia é contrária à lógica dos Sacramentos porque afirma ter poder sobre Deus e, por isso, vem do tentador. Em perfeita continuidade com a Encarnação, nos é dada a possibilidade, em virtude da presença e ação do Espírito, de morrer e ressuscitar em Cristo.

13. A maneira como isso acontece é tocante. A oração de bênção pela água batismal revela-nos que Deus criou a água precisamente em vista do batismo. Quer dizer que enquanto Deus criou a água ele pensou no batismo de cada um de nós, e este pensamento o acompanhou em suas ações ao longo da história da salvação todas as vezes que, com um propósito específico, ele quis usar a água. É como se, depois de criá-lo, quisesse aperfeiçoá-lo para se tornar a água do batismo. E por isso quis enchê-la com o movimento do seu Espírito que pairava sobre ela (cf. Gn 1,2), para que contivesse em germe o poder de santificar; Ele a usou para regenerar a humanidade no dilúvio (cf. Gn 6,1-9,29); ele o dominou separando-o para abrir um caminho de libertação no Mar Vermelho (cf. Ex 14); Ele a consagrou no Jordão, submergindo a carne do Verbo, impregnada do Espírito (cf. Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22). Finalmente, misturou-o com o sangue de seu Filho, dom do Espírito inseparavelmente ligado ao dom da vida e da morte do Cordeiro imolado por nós, e do seu lado traspassado derramou-o sobre nós (Jo 19,34). Nesta água fomos imersos para que, pelo seu poder, pudéssemos ser enxertados no Corpo de Cristo e, com Ele, ressuscitar para a vida imortal (cf. Rm 6,1-11).

A Igreja: Sacramento do Corpo de Cristo

14. Como nos recordou o Concílio Vaticano II (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 5), citando a Escritura, os Padres e a Liturgia – colunas da verdadeira Tradição – do lado de Cristo adormecido na cruz brotou o admirável sacramento de todos os Igreja. O paralelismo entre o primeiro e o novo Adão é surpreendente: assim como do lado do primeiro Adão, depois de ter deixado cair uma letargia sobre ele, Deus formou Eva, do lado do novo Adão, adormecido no sono da morte, nasce a nova Eva, a Igreja. O estupor está nas palavras que, poderíamos imagine, o novo Adão se torna seu olhando para a Igreja: “Esta é, de fato, osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2,23). Por termos crido na Palavra e ter descido na água do batismo, nos tornamos osso de seus ossos, carne de sua carne.

15. Sem esta incorporação, não há possibilidade de experimentar a plenitude do culto a Deus. De fato, apenas um é o ato perfeito e agradável de adoração ao Pai, a obediência do Filho cuja medida é sua morte na cruzA única possibilidade de participar de sua oferta é ser filhos no Filho. Este é o presente que recebemos. O sujeito que atua na Liturgia é sempre e somente Cristo-Igreja, o Corpo Místico de Cristo.

O significado teológico da liturgia

16. Devemos ao Concílio – e ao movimento litúrgico que o precedeu – a redescoberta da compreensão teológica da Liturgia e de sua importância na vida da Igreja: os princípios gerais enunciados pela Sacrosanctum Concilium, assim como eram fundamentais para a reforma, continuem a ser para a promoção de uma participação plena, consciente, ativa e fecunda na celebração (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 11.14), "fonte primária e necessária da qual os fiéis devem beber o espírito verdadeiramente cristão" (Sacrosanctum Concilium, No. 14). Com esta carta, gostaria simplesmente de convidar toda a Igreja a redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã. Gostaria que a beleza da celebração cristã e suas consequências necessárias na vida da Igreja não fossem desfiguradas por uma compreensão superficial e redutora de seu valor ou, pior ainda, por sua instrumentalização a serviço de alguma visão ideológica, seja ela qual for pode ser. A oração sacerdotal de Jesus na Última Ceia para que todos sejam um (Jo 17,21), julga todas as nossas divisões em torno do Pão partido, sacramento da piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade.

17. Adverti em várias ocasiões sobre uma perigosa tentação para a vida da Igreja que é o “mundanismo espiritual”: falei muito sobre isso na Exortação Evangelii gaudium (nn. 93-97), identificando o gnosticismo e o neopelagianismo como os dois modos ligados entre si, que o alimentam.

A primeira reduz a fé cristã a um subjetivismo que encerra o indivíduo "na imanência de sua própria razão ou de seus sentimentos" (Evangelii gaudium, 94).

A segunda anula o valor da graça para contar apenas com a própria força, dando origem a "um elitismo narcísico e autoritário, onde em vez de evangelizar o que se faz é analisar e classificar os outros, e em vez de facilitar o acesso se gasta energias no controle da graça ” (Evangelii gaudium, n. 94).

Essas formas distorcidas de cristianismo podem ter consequências desastrosas para a vida da Igreja.

18. É evidente, em tudo o que quis recordar acima, que a Liturgia é, por sua própria natureza, o antídoto mais eficaz contra esses venenos. Obviamente, falo da Liturgia em seu sentido teológico e – Pio XII já disse – não como um cerimonial decorativo… ou um mero conjunto de leis e preceitos… que ordena o cumprimento dos ritos.

19. Se o gnosticismo nos intoxica com o veneno do subjetivismo, a celebração litúrgica nos liberta da prisão de uma autorreferencialidade alimentada por nossa própria razão ou sentimento: a ação celebrativa não pertence ao indivíduo, mas a Cristo-Igreja, à totalidade dos fiéis unidos em Cristo. A Liturgia não diz “eu”, mas “nós”, e qualquer limitação à amplitude desse “nós” é sempre demoníaca. A Liturgia não nos deixa sozinhos na busca de um suposto conhecimento individual do mistério de Deus, mas toma-nos pela mão, juntos, em assembléia, para nos conduzir ao mistério que a Palavra e os sinais sacramentais revelam a nós. E o faz, em coerência com a ação de Deus, seguindo o caminho da Encarnação, através da linguagem simbólica do corpo, que se estende às coisas, ao espaço e ao tempo.

Redescubra todos os dias a beleza da verdade da celebração cristã

20. Se o neopelagianismo nos intoxica com a presunção de uma salvação conquistada com nossa força, a celebração litúrgica nos purifica proclamando a gratuidade do dom da salvação recebido na fé. Participar do sacrifício eucarístico não é uma conquista nossa, como se pudéssemos nos gloriar diante de Deus e diante de nossos irmãos. O início de cada celebração me lembra quem eu sou, pedindo-me para confessar meu pecado e convidando-me a rezar à Bem-Aventurada Virgem Maria, aos anjos, aos santos e a todos os irmãos e irmãs, para interceder por mim diante do Senhor: certamente não somos dignos de entrar em sua casa, precisamos de uma palavra dele para nos salvar (cf. Mt 8,8). Não temos outra glória senão a cruz de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Gl 6,14). A liturgia não tem nada a ver com um moralismo ascético: é o dom pascal do Senhor que, acolhido com docilidade, renova a nossa vida. Não se entra no Cenáculo senão pela força atrativa de seu desejo de comer a Páscoa conosco: Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar (Lc 22,15).

21. No entanto, devemos ter cuidado: para que o antídoto da liturgia seja eficaz, somos chamados a redescobrir todos os dias a beleza da verdade da celebração cristã. Refiro-me, mais uma vez, ao seu significado teológico, como admiravelmente descrito no n. 7 da Sacrosanctum Concilium: a Liturgia é o sacerdócio de Cristo revelado e dado a nós em sua Páscoa, presente e atuante hoje por meio de sinais sensíveis (água, óleo, pão, vinho, gestos, palavras) para que o Espírito, mergulhando-nos no mistério pascal, transformam toda a nossa vida, conformando-nos cada vez mais a Cristo.

22. A contínua redescoberta da beleza da Liturgia não é a busca de um esteticismo ritual, que se deleita apenas com o cuidado da formalidade externa de um rito, ou se satisfaz com uma escrupulosa observância das rubricas. Evidentemente, esta afirmação não pretende endossar, de forma alguma, a atitude oposta que confunde o simples com um descuido banal, o essencial com superficialidade ignorante, a concretude da ação ritual com um funcionalismo prático exagerado.

23. Sejamos claros: é preciso cuidar de todos os aspectos da celebração (espaço, tempo, gestos, palavras, objetos, roupas, canções, música,...) e observar todas as rubricas: essa atenção bastaria não roubar à assembléia o que lhe corresponde, isto é, o mistério pascal celebrado na forma ritual estabelecida pela Igreja. Mas mesmo que a qualidade e o padrão da ação comemorativa fossem garantidos, isso não seria suficiente para nossa plena participação.

Maravilhe-se com o mistério pascal, parte essencial da ação litúrgica

24. Se não houvesse admiração pelo mistério pascal que se faz presente na concretização dos sinais sacramentais, corremos o risco de sermos verdadeiramente impermeáveis ​​ao oceano de graça que inunda cada celebração. Não bastam os esforços, ainda que louváveis, por uma melhor qualidade da celebração, nem um apelo à interioridade: mesmo isso corre o risco de se reduzir a uma subjetividade vazia se não acolher a revelação do mistério cristão. O encontro com Deus não é o resultado de uma busca interior individual, mas é um evento dom: podemos encontrar Deus através do fato novo da Encarnação que, na Última Ceia, chega ao ponto de querer ser comido por nós. Infelizmente, como pode escapar-nos o fascínio pela beleza desta dádiva?

25. Quando digo espanto pelo mistério pascal, não me refiro absolutamente ao que me parece significar a vaga expressão “sentido do mistério”: às vezes, entre as alegadas acusações contra a reforma litúrgica está que de ter – diz-se – afastado da celebração. O espanto de que falo não é uma espécie de desorientação ante uma realidade obscura ou um rito enigmático, mas é a admiração pelo facto de o desígnio salvífico de Deus nos ter sido revelado na Páscoa de Jesus (cf. Ef 1,3-14 ), cuja eficácia continua a chegar até nós na celebração dos “mistérios”, isto é, dos sacramentos. No entanto, não deixa de ser verdade que a plenitude da revelação tem, em relação à nossa finitude humana, um excesso que nos transcende e que terá seu cumprimento no fim dos tempos, quando o Senhor voltar. Se o espanto for verdadeiro, não há risco de que a alteridade da presença de Deus não seja percebida, mesmo na proximidade que a Encarnação quis. Se a reforma tivesse eliminado esse “senso de mistério”, seria um mérito e não uma acusação. A beleza, como a verdade, sempre gera admiração e, quando se refere ao mistério de Deus, leva à adoração.

26. O espanto é parte essencial da ação litúrgica porque é a atitude de quem sabe que está diante da peculiaridade dos gestos simbólicos; é a maravilha de quem experimenta a força do símbolo, que não consiste em referir-se a um conceito abstrato, mas em conter e expressar, em sua concretude, o que ele significa.

A necessidade de uma formação litúrgica séria e vital

27. Esta é, pois, a questão fundamental: como recuperar a capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? A reforma do Concílio tem esse objetivo. O desafio é muito exigente, porque o homem moderno – não em todas as culturas da mesma forma – perdeu a capacidade de enfrentar a ação simbólica, que é uma característica essencial do ato litúrgico.

28. A pós-modernidade – em que o homem se sente ainda mais perdido, sem referências de qualquer tipo, desprovido de valores, porque se tornou indiferente, órfão de tudo, numa fragmentação em que um horizonte de sentido parece impossível – continua carregando o pesado legado deixado para nós pela era anterior, composta de individualismo e subjetivismo (reminiscente, mais uma vez, do pelagianismo e do gnosticismo), bem como de um espiritualismo abstrato que contradiz a própria natureza do homem, o espírito encarnado e, portanto, em si capaz de ação e compreensão simbólica.

29A Igreja reunida no Concílio quis enfrentar a realidade da modernidadereafirmando sua consciência de ser sacramento de Cristo, luz do povo (Lumen Gentium), escutando atentamente a Palavra de Deus (Dei Verbum) e reconhecendo como seu as alegrias e esperanças (Gaudium et spes) dos homens de hojeAs grandes Constituições conciliares são inseparáveis, e não é por acaso que esta única grande reflexão do Concílio Ecumênico – expressão máxima da sinodalidade da Igreja, de cuja riqueza sou chamado a ser, com todos vocês, guardião – começou da Liturgia (Sacrosanctum Concilium).

30. Concluindo a segunda sessão do Concílio (4 de dezembro de 1963), São Paulo VI assim se expressou [7]:

"De resto, a discussão árdua e intrincada não foi sem frutos, pois um dos temas, o primeiro a ser examinado, e em certo sentido também o primeiro por sua excelência intrínseca e sua importância para a vida da Igreja , o da Sagrada Liturgia, foi concluído e hoje é solenemente promulgado por Nós. Nosso espírito exulta de alegria com esse resultado. 
Nisto prestamos homenagem segundo a escala de valores e deveres: 
Deus em primeiro lugar; 
oração, nossa primeira obrigação; 
a liturgia, primeira fonte de vida divina que nos é comunicada, primeira escola de nossa vida espiritual, primeiro dom que podemos fazer ao povo cristão, que conosco cremos e rezamos, e primeiro convite ao mundo soltar em oração alegre e verdadeira a tua língua muda e sentir o inefável poder regenerador de cantar conosco os louvores divinos e as esperanças humanas, por Cristo Senhor no Espírito Santo».

31. Nesta carta não posso me deter na riqueza de cada uma das expressões, que deixo para sua meditação. Se a Liturgia é "o ápice para onde tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde brota toda a sua força" (Sacrosanctum Concilium, 10), compreendemos bem o que está em jogo na questão litúrgica. Seria trivial ler as tensões, infelizmente presentes em torno da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades sobre uma forma ritual. O problema é, antes de tudo, eclesiológicoNão vejo como se pode dizer que a validade do Concílio seja reconhecida – embora me surpreenda um pouco que um católico possa presumir não fazê-lo – e não aceitar a reforma litúrgica nascida da Sacrosanctum Concilium, que expressa a realidade da Liturgia em estreita ligação com a visão da Igreja admiravelmente descrita pela Lumen Gentium. Por isso – como expliquei na carta enviada a todos os Bispos – senti-me no dever de afirmar que “os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, como única expressão da lex orandi do Rito Romano” (Motu Proprio Traditionis custodes, art. 1).

A não aceitação da reforma, bem como uma compreensão superficial dela, nos desvia da tarefa de encontrar as respostas para a pergunta que repito: como crescer na capacidade de viver plenamente a ação litúrgica? Como podemos continuar a nos maravilhar com o que acontece diante de nossos olhos na celebração? Precisamos de uma formação litúrgica séria e vital.

32. Voltemos ao Cenáculo de Jerusalém: na manhã de Pentecostes nasceu a Igreja, célula inicial da nova humanidade. Somente a comunidade de homens e mulheres reconciliados, porque foram perdoados; vivo, porque Ele está vivo; verdadeiras, porque são habitadas pelo Espírito da verdade, podem abrir o estreito espaço do individualismo espiritual.

33. É a comunidade de Pentecostes que pode partir o Pão com a certeza de que o Senhor está vivo, ressuscitado dos mortos, presente com a sua palavra, com os seus gestos, com a oferta do seu Corpo e do seu Sangue. A partir desse momento, a celebração torna-se o lugar privilegiado, não o único, do encontro com Ele. Sabemos que, só graças a este encontro, o homem se torna plenamente homem. Só a Igreja de Pentecostes pode conceber o homem como pessoa, aberta a uma relação plena com Deus, com a criação e com os seus irmãos.

34. Aqui surge a questão decisiva da formação litúrgica. Guardini diz: “É assim que se delineia também a primeira tarefa prática: apoiados por esta transformação interior de nosso tempo, devemos aprender mais uma vez a nos situarmos diante da relação religiosa como homens em sentido pleno. É isso que torna a Liturgia possível, é nisso que devemos nos formar. O próprio Guardini não hesita em afirmar que, sem formação litúrgica, "as reformas no rito e no texto não servem de muito". Não pretendo agora tratar exaustivamente do riquíssimo tema da formação litúrgica: quero apenas oferecer alguns pontos de reflexão. Acho que podemos distinguir dois aspectos: a formação para a liturgia e a formação a partir da liturgia. A primeira é uma função da segunda, que é essencial.

35É necessário encontrar canais de formação como estudo da Liturgia: desde o movimento litúrgico, muito se tem feito nesse sentido, com valiosas contribuições de muitos estudiosos e instituições acadêmicas. No entanto, é necessário difundir este conhecimento fora do âmbito acadêmico, de forma acessível, para que cada crente cresça no conhecimento do significado teológico da Liturgia – esta é a questão decisiva e fundacional de todo conhecimento e de toda prática litúrgica –, bem como no desenvolvimento da celebração cristã, adquirindo a capacidade de compreender os textos eucológicos, os dinamismos rituais e o seu valor antropológico.

36. Penso na normalidade das nossas assembleias que se reúnem para celebrar a Eucaristia no Dia do Senhor, domingo após domingo, Páscoa após Páscoa, em momentos específicos da vida das pessoas e das comunidades, nas diversas idades da vida: os ministros ordenados realizam uma ação pastoral da maior importância quando levam pela mão os fiéis batizados para conduzi-los à repetida experiência da Páscoa. Recordemos sempre que a Igreja, Corpo de Cristo, é a celebrante, não apenas o sacerdote. O conhecimento que vem do estudo é apenas o primeiro passo para poder entrar no celebrado mistério. É evidente que, para orientar os irmãos e irmãs, os ministros que presidem à assembleia devem conhecer o caminho, tanto por tê-lo estudado no mapa da ciência teológica, como por tê-lo percorrido na prática de uma experiência de fé viva. , alimentada pela oração, certamente não apenas como um compromisso a cumprir. No dia da ordenação, cada sacerdote ouve o seu bispo dizer: "Considera o que fazes e imita o que comemoras, e conforma a tua vida ao mistério da cruz do Senhor".

37. A configuração do estudo da Liturgia nos seminários deve levar também em conta a extraordinária capacidade que a própria celebração tem de oferecer uma visão orgânica do conhecimento teológico. Cada disciplina de teologia, desde a sua perspectiva, deve mostrar a sua íntima ligação com a Liturgia, em virtude da qual se revela e se realiza a unidade da formação sacerdotal (cf. Sacrosanctum Concilium, 16). Uma configuração litúrgico-sapiencial da formação teológica nos seminários certamente teria efeitos positivos, também na ação pastoral. Não há aspecto da vida eclesial que não encontre nela seu ápice e sua fonte. A pastoral global, orgânica e integrada, mais do que o resultado da elaboração de complicados programas, é a consequência de colocar a celebração eucarística dominical, fundamento da comunhão, no centro da vida da comunidade. A compreensão teológica da Liturgia não permite, de forma alguma, entender essas palavras como se tudo se reduzisse ao aspecto cultual. Uma celebração que não evangeliza não é autênticaassim como não é um anúncio que não conduz ao encontro com o Ressuscitado na celebraçãoambos, pois, sem o testemunho da caridade, são como um metal que ressoa ou um címbalo que atordoa (cf. 1Cor 13,1).

38. Para os ministros e para todos os baptizados, a formação litúrgica, no seu primeiro sentido, não é algo que possa ser conquistado de uma vez por todas: visto que o dom do mistério celebrado excede a nossa capacidade de conhecimento, este compromisso deve certamente acompanhar o permanente formação de cada um, com a humildade dos pequeninos, atitude que abre ao espanto.

39Uma observação final sobre os seminários: além do estudo, eles devem também oferecer a oportunidade de experimentar uma celebração, não apenas exemplar do ponto de vista ritual, mas também autêntica, vital, que permita viver aquela verdadeira comunhão com Deus, para o qual também deve tender ao conhecimento teológico. Somente a ação do Espírito pode aperfeiçoar nosso conhecimento do mistério de Deus, que não é uma questão de compreensão mental, mas de uma relação que toca a vida. Esta experiência é fundamental para que, uma vez ordenados ministros, possam acompanhar as comunidades no mesmo caminho de conhecimento do mistério de Deus, que é mistério de amor.

40. Esta última consideração nos leva a refletir sobre o segundo sentido com o qual podemos entender a expressão “formação litúrgica”Refiro-me a ser formado, cada um segundo a sua vocação, participando na celebração litúrgica. Mesmo o conhecimento do estudo que acabo de mencionar, para que não se torne racionalismo, deve basear-se na implementação da ação formativa da Liturgia em cada crente em Cristo.

41. Do que dissemos sobre a natureza da Liturgia, é evidente que o conhecimento do mistério de Cristo, questão decisiva para nossas vidas, não consiste em uma assimilação mental de uma ideia, mas em um envolvimento existencial real com sua pessoa. Nesse sentido, a liturgia não tem nada a ver com "conhecimento", e sua finalidade não é primordialmente pedagógica (embora tenha grande valor pedagógico: cf. Sacrosanctum Concilium, 33), mas é louvor, ação de graças pela Páscoa de o Filho, cujo poder salvador entra em nossas vidas. A celebração tem a ver com a realidade de sermos dóceis à ação do Espírito, que nela atua, até que Cristo seja formado em nós (cf. Gl 4,19). A plenitude da nossa formação é a conformação com Cristo. Repito: não se trata de um processo mental e abstrato, mas de tornar-se Ele. Este é o propósito para o qual foi dado o Espírito, cuja ação é sempre e somente fazer o Corpo de Cristo. É assim com o pão eucarístico, é assim para cada batizado chamado a ser, cada vez mais, o que recebeu de dom no batismo, ou seja, ser membro do Corpo de Cristo. Leão Magno escreve: «A nossa participação no Corpo e Sangue de Cristo tende a não fazer outra coisa senão tornar-se o que comemos» [11].

42. Esta implicação existencial realiza-se – em continuidade e coerência com o método da Encarnação – por meios sacramentais. A Liturgia é feita de coisas que são exatamente o oposto das abstrações espirituais: pão, vinho, óleo, água, perfume, fogo, cinzas, pedra, tecido, cores, corpo, palavras, sons, silêncios, gestos, espaço, movimento, ação . , ordem, tempo, luz. Toda a criação é uma manifestação do amor de Deus: desde que esse mesmo amor se manifestou plenamente na cruz de Jesus, toda a criação é atraída por Ele. É toda a criação que se supõe ser colocada a serviço do encontro com Deus. Verbo encarnado, crucificado, morto, ressuscitado, ascendido ao Pai. Assim como ele canta a oração sobre a água para a pia batismal, assim como a oração sobre o óleo para o sagrado crisma e as palavras da apresentação do pão e do vinho, frutos da terra e trabalho do homem.

43. A liturgia dá glória a Deus não porque podemos acrescentar algo à beleza da luz inacessível em que Ele habita (cf. 1 Tm 6,16) ou à perfeição do canto angélico, que ressoa eternamente nas mansões celestiais . A liturgia dá glória a Deus porque nos permite, aqui na terra, ver Deus na celebração dos mistérios e, ao vê-lo, reviver através de sua Páscoa: nós, que estávamos mortos pelos pecados, fomos ressuscitados pela graça com Cristo ( cf. Ef 2,5), nós somos a glória de Deus. Irineu, doctor unitatis, nos lembra: «A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem consiste na visão de Deus: se já a revelação de Deus através da criação dá vida a todos os seres vivos na terra, quanto mais a manifestação do Pai através do Verbo é causa de vida para quem vê Deus!” [12].

44. Guardini escreve: «Isso delineia a primeira tarefa do trabalho de formação litúrgica: o homem deve tornar-se novamente capaz de símbolos» [13]. Esta tarefa diz respeito a todos, ministros ordenados e fiéis. A tarefa não é fácil, porque o homem moderno é analfabeto, não sabe mais ler os símbolos, mal sabe de sua existência. Isso também acontece com o símbolo do nosso corpo. É um símbolo porque é a união íntima da alma e do corpo, visibilidade da alma espiritual na ordem do corpóreo, e nisso consiste a singularidade humana, a especificidade da pessoa irredutível a qualquer outra forma de viver ser. A nossa abertura ao transcendente, a Deus, é constitutiva: não reconhecê-lo leva-nos inevitavelmente a um não conhecimento, não só de Deus, mas também de nós mesmos. Basta ver a forma paradoxal como o corpo é tratado, ou tratado quase obsessivamente em busca do mito da eterna juventude, ou reduzido a uma materialidade à qual toda dignidade é negada. O fato é que você não pode dar valor ao corpo apenas a partir do corpo. Todo símbolo é poderoso e frágil: se não for respeitado, se não for tratado pelo que é, quebra, perde a força, torna-se insignificante.

Já não temos o olhar de São Francisco, que olhou para o sol – que chamava de irmão porque assim se sentia –, o viu belo e radiante cum grande splendore e, cheio de espanto, cantou: de te Altissimu, porta significatione. A perda da capacidade de compreender o valor simbólico do corpo e de cada criatura torna a linguagem simbólica da Liturgia quase inacessível ao homem moderno. Não se trata, porém, de renunciar a essa linguagem: ela não pode ser renunciada porque é aquela que a Santíssima Trindade escolheu para chegar até nós na carne do Verbo. Pelo contrário, trata-se de recuperar a capacidade de representar e compreender os símbolos da Liturgia. Não é preciso desesperar, porque no homem essa dimensão, como acabei de dizer, é constitutiva e, apesar dos males do materialismo e do espiritismo – ambos negação da unidade do corpo e da alma –, está sempre pronta a reaparecer, como tudo VERDADEIRO.

45. Então, a pergunta que nos fazemos é como nos tornarmos capazes de símbolos novamente? Como saber lê-los novamente para vivê-los? Sabemos muito bem que a celebração dos sacramentos é – pela graça de Deus – eficaz em si mesma (ex opere operato), mas isso não garante um envolvimento pleno das pessoas sem uma forma adequada de se situar diante da linguagem da a celebração. A leitura simbólica não é uma questão de conhecimento mental, de aquisição de conceitos, mas uma experiência vital.

46. ​​Acima de tudo, devemos recuperar a confiança na criação. Com isso quero dizer que as coisas – com as quais os sacramentos são “feitos” – vêm de Deus, são orientadas para Ele e foram assumidas por Ele, especialmente com a encarnação, para se tornarem instrumentos de salvação, veículos do Espírito Santo. Espírito. canais de graça Aqui percebe-se a distância, tanto da visão materialista quanto da espiritualista. Se as coisas criadas são parte inalienável da ação sacramental que realiza nossa salvação, devemos nos colocar diante delas com um olhar novo, não superficial, respeitoso, agradecido. Desde o início, eles contêm a semente da graça santificante dos sacramentos.

47. Outra questão decisiva – refletindo novamente sobre como a Liturgia nos forma – é a educação necessária para adquirir a atitude interior que nos permite situar e compreender os símbolos litúrgicos. Eu coloquei de forma simples. Estou a pensar nos pais e, mais ainda, nos avós, mas também nos nossos párocos e catequistas. Muitos de nós aprendemos com eles o poder dos gestos litúrgicos, como o sinal da cruz, o ajoelhar-se ou as fórmulas da nossa fé. Talvez não tenhamos uma lembrança vívida disso, mas podemos facilmente imaginar o gesto de uma mão maior pegando a mão pequena de uma criança e acompanhando-a lentamente enquanto traça, pela primeira vez, o sinal de nossa salvação. O movimento é acompanhado pelas palavras, também lentas, como que para se apropriar de cada momento daquele gesto, de todo o corpo: «Em nome do Pai... e do Filho... e do Espírito Santo... . Amém » . Para depois soltar a mão da criança e, pronto a socorrê-la, ver como só ela repete aquele gesto já dado, como se fosse um hábito que vai crescer com ela, vestindo-a da maneira que só o Espírito sabe. A partir desse momento, esse gesto, a sua força simbólica, pertence-nos, ou melhor, pertencemos a esse gesto, dá-nos forma, somos por ele moldados. Não é necessário falar muito, não é necessário ter entendido tudo sobre este gesto: é preciso ser pequeno, tanto ao dar como ao recebê-lo. O resto é obra do Espírito. Assim, fomos iniciados na linguagem simbólica. Não podemos permitir que essa riqueza nos seja roubada. À medida que crescemos, podemos ter mais meios para compreender, mas sempre com a condição de permanecermos pequenos.

A arte de celebrar

48. Uma maneira de preservar e crescer na compreensão vital dos símbolos da Liturgia é, certamente, cuidar da arte de celebrar. Esta expressão também está sujeita a diferentes interpretações. Compreende-se mais claramente tendo em conta o sentido teológico da Liturgia descrito no número 7 da Sacrosanctum Concilium, a que já nos referimos várias vezes. A arte de celebrar não pode ser reduzida à mera observância de um aparato de rubricas, nem pode ser pensada como uma criatividade fantasiosa – às vezes selvagem – sem regras. O rito é em si uma norma, e a norma nunca é um fim em si mesma, mas está sempre a serviço da realidade superior que quer proteger.

49. Como qualquer arte, requer conhecimentos diferentes.

Em primeiro lugar, a compreensão do dinamismo que a Liturgia descreve. O momento da ação celebrativa é o lugar onde, por meio do memorial, o mistério pascal se torna presente para que os batizados, em virtude de sua participação, possam experimentá-lo em suas vidas: sem esta compreensão, é fácil cair em "exteriorismo" (mais ou menos refinado) e rubricismo (mais ou menos rígido).

É necessário, portanto, saber como o Espírito Santo age em cada celebração: a arte de celebrar deve estar em sintonia com a ação do Espírito. Esta é a única maneira de se livrar dos subjetivismos, que são fruto da prevalência das sensibilidades individuais, e dos culturalismos, que são incorporações sem critérios de elementos culturais, que nada têm a ver com um correto processo de inculturação.

Por fim, é preciso conhecer a dinâmica da linguagem simbólica, sua peculiaridade, sua eficácia.

50. Destas breves observações decorre que a arte de celebrar não pode ser improvisada. Como qualquer arte, requer aplicação regular. Um artesão só precisa da técnica; um artista, além do conhecimento técnico, não pode carecer de inspiração, que é uma forma positiva de posse: o verdadeiro artista não possui uma arte, nem é possuído por ela. Você não aprende a arte de celebrar porque frequenta um curso de oratória ou técnicas de comunicação persuasiva (não julgo as intenções, vejo os efeitos). Qualquer instrumento pode ser útil, mas deve estar sempre sujeito à natureza da Liturgia e à ação do Espírito. É necessária uma dedicação diligente à celebração, deixando que a própria celebração nos transmita a sua arte. Guardini escreve: “Devemos perceber quão profundamente enraizados ainda estamos no individualismo e no subjetivismo, quão desacostumados estamos ao chamado das grandes coisas e quão pequena é a medida de nossa vida religiosa. Devemos despertar o sentido da grandeza da oração, a vontade de envolver também nossa existência nela. Mas o caminho para esses objetivos é a disciplina, a renúncia ao sentimentalismo suave; um trabalho sério, realizado em obediência à Igreja, em relação ao nosso ser e ao nosso comportamento religioso». Assim se aprende a arte da celebração.

51. Falando deste tema, podemos pensar que se trata apenas de ministros ordenados que exercem o serviço da presidência. Na realidade, é uma atitude à qual todos os batizados são chamados a viverPenso em todos os gestos e palavras que pertencem à assembléia: reunir, andar em procissão, sentar, levantar, ajoelhar, cantar, ficar em silêncio, torcer, olhar, ouvirHá muitas maneiras pelas quais a assembléia, como um homem (Ne 8,1), participa da celebração. Fazer o mesmo gesto juntos, falar ao mesmo tempo, transmite aos indivíduos a força de toda a assembléia. É uma uniformidade que não só não mortifica, mas, ao contrário, educa cada fiel a descobrir a autêntica singularidade de sua personalidade, não com atitudes individualistas, mas com a consciência de ser um só corpo. Não se trata de seguir um protocolo litúrgico: trata-se de uma “disciplina” – no sentido usado por Guardini – que, se observada com autenticidade, nos forma: são gestos e palavras que ordenam nosso mundo interior, tornando experimentamos sentimentos, atitudes, comportamentos. Eles não são a afirmação de um ideal no qual nos inspirar, mas uma ação que envolve o corpo em sua totalidade, ou seja, sendo uma unidade de alma e corpo.

52Entre os gestos rituais que pertencem a toda a assembleia, silêncio ocupa um lugar de absoluta importância. Várias vezes é expressamente prescrito nas rubricas: toda a celebração eucarística está imersa no silêncio que precede seu início e marca cada momento de seu desenvolvimento ritual. Com efeito, ele está presente no ato penitencial; após o convite à oração; na Liturgia da Palavra (antes das leituras, entre as leituras e depois da homilia); na oração eucarística; depois da comunhão. Não é um refúgio para se esconder em isolamento íntimo, sofrendo a ritualidade como se fosse uma distração: tal silêncio contrariaria a própria essência da celebração. O silêncio litúrgico é muito mais: é o símbolo da presença e da ação do Espírito Santo que anima toda a ação celebrativa e, por isso, muitas vezes constitui o culminar de uma sequência ritual. Precisamente por ser símbolo do Espírito, tem o poder de expressar sua ação multiforme. Assim, voltando aos momentos que recordei anteriormente, o silêncio leva ao arrependimento e ao desejo de conversão; estimula a escuta da Palavra e a oração; dispõe à adoração do Corpo e Sangue de Cristo; sugere a cada um, na intimidade da comunhão, o que o Espírito quer operar em nossas vidas para nos conformar ao Pão partido. Por isso, somos chamados a realizar com extremo cuidado o gesto simbólico do silêncio: nele o Espírito nos molda.

53. Cada gesto e cada palavra contém uma ação precisa e sempre nova, porque encontra um momento sempre novo em nossa vida. Deixe-me explicar com um exemplo simples. Ajoelhamo-nos para pedir perdão; quebrar nosso orgulho; entregar nossas lágrimas a Deus; pleitear sua intervenção; agradecer-lhe um dom recebido: é sempre o mesmo gesto, que exprime essencialmente a nossa pequenez diante de Deus. No entanto, realizado em diferentes momentos de nossas vidas, modela nossa profunda interioridade e depois se manifesta externamente em nosso relacionamento com Deus e com nossos irmãos. Ajoelhar-se também deve ser feito com arte, ou seja, com plena consciência do seu significado simbólico e da necessidade que temos de expressar, através deste gesto, o nosso modo de estar na presença do Senhor. Se tudo isso vale para este simples gesto, quanto mais para a celebração da Palavra? Que arte somos chamados a aprender anunciando a Palavra, ouvindo-a, fazendo dela inspiração da nossa oração, fazendo-a viver? Tudo isso merece o máximo cuidado, não formal, exterior, mas vital, interior, porque cada gesto e cada palavra da celebração expressa com "arte" forma a personalidade cristã do indivíduo e da comunidade.

54Se é verdade que a arte de celebrar diz respeito a toda a assembléia que a celebra, não é menos verdade que os ministros ordenados devem ter um cuidado especial com ela. Ao visitar as comunidades cristãs, verifiquei muitas vezes que a sua forma de viver a celebração está condicionada – para melhor, e infelizmente também para pior – pela forma como o seu pároco preside à assembleia. Poderíamos dizer que existem diferentes "modelos" de presidência. Eis uma possível lista de atitudes que, embora opostas, caracterizam a presidência de uma forma certa inadequada: rigidez austera ou criatividade exagerada; misticismo espiritualizante ou funcionalismo prático; pressa precipitada ou lentidão acentuada; descuido desgrenhado ou refinamento excessivo; afabilidade superabundante ou impassibilidade hierática. Apesar da amplitude dessa gama, acredito que a inadequação desses modelos tem uma raiz comum: um personalismo exagerado no estilo comemorativo que, às vezes, expressa uma mania mal disfarçada de protagonismo. Isso costuma ficar mais evidente quando nossas celebrações são transmitidas online, algo que nem sempre é apropriado e sobre o qual devemos refletir. Claro que essas não são as atitudes mais difundidas, mas as assembleias são frequentemente o objeto desses “maus-tratos”.

55. Muito poderia ser dito sobre a importância e cuidado da presidência. Em várias ocasiões me detive na exigente tarefa da homilia. Vou agora me limitar a algumas considerações mais amplas, querendo, mais uma vez, refletir com vocês sobre como somos formados pela Liturgia. Penso na normalidade das missas dominicais em nossas comunidades: refiro-me, então, aos sacerdotes, mas implicitamente a todos os ministros ordenados.

56O sacerdote vive sua própria participação durante a celebração em virtude do dom recebido no sacramento da Ordem: esta tipologia se expressa precisamente na presidência. Como todos os ofícios que ele é chamado a desempenhar, esta não é, em primeiro lugar, uma tarefa atribuída pela comunidade, mas a consequência da efusão do Espírito Santo recebida na ordenação, que o qualifica para essa tarefa. O sacerdote também se forma presidindo a assembléia que celebra.

57. Para que este serviço seja bem feito – com arte – é de fundamental importância que o sacerdote tenha, sobretudo, a viva consciência de ser, por misericórdia, uma presença particular do Ressuscitado. O ministro ordenado é em si mesmo um dos caminhos da presença do Senhor que torna a assembléia cristã única, diferente de qualquer outra (cf. Sacrosanctum Concilium, 7). Este fato dá profundidade “sacramental” –em sentido amplo– a todos os gestos e palavras daquele que preside. A assembléia tem o direito de poder sentir nesses gestos e palavras o desejo que o Senhor tem, hoje como na última ceia, de continuar comendo a Páscoa conosco. Portanto, o Ressuscitado é o protagonista, e não a nossa imaturidade, que procura assumir um papel, uma atitude e uma forma de se apresentar, que não lhe corresponde. O próprio sacerdote é tomado por este desejo de comunhão que o Senhor tem com cada um: é como se estivesse colocado entre o coração ardente de amor de Jesus e o coração de cada crente, objeto do seu amor. Presidir à Eucaristia é mergulhar na fornalha do amor de Deus. Quando essa realidade é compreendida ou mesmo intuída, certamente não precisamos mais de um diretório que dite o comportamento adequado. Se precisamos, é por causa da dureza de nossos corações. O padrão mais alto e, portanto, o mais exigente, é a própria realidade da celebração eucarística, que seleciona as palavras, os gestos, os sentimentos, fazendo-nos compreender se são ou não adequados à tarefa que têm a desempenhar. Obviamente, isto também não pode ser improvisado: é uma arte, requer a aplicação do sacerdote, ou seja, a frequência assídua do fogo do amor que o Senhor veio trazer à terra (cf. Lc 12,49).

58. Quando a primeira comunidade parte o pão obedecendo ao mandamento do Senhor, fá-lo sob o olhar de Maria, que acompanha os primeiros passos da Igreja: "perseveraram unânimes na oração, juntamente com algumas mulheres e Maria, a mãe de Jesus” (At 1,14). A Virgem Mãe "supervisiona" os gestos de seu Filho confiados aos Apóstolos. Assim como conservou em seu seio o Verbo feito carne, depois de acolher as palavras do anjo Gabriel, a Virgem também agora conserva no seio da Igreja aqueles gestos que compõem o corpo de seu Filho. O sacerdote, que em virtude do dom recebido pelo sacramento da Ordem repete esses gestos, é guardado no seio da VirgemPrecisamos de uma norma que nos diga como nos comportar?

59. Convertidos em instrumentos para que o fogo do seu amor arda na terra, guardado nas entranhas de Maria, Virgem feita Igreja (como cantava São Francisco), os sacerdotes deixam-se modelar pelo Espírito que quer levar a cabo a obra que começou na sua ordenação. A ação do Espírito oferece-lhes a possibilidade de exercer a presidência da assembléia eucarística com o temor de Pedro, consciente de sua condição de pecador (cf. Lc 5,1-11), com a forte humildade do servo sofredor (cf. Lc 5,1-11). cf. Is 42 ss), com o desejo de “ser comido” pelas pessoas que lhes foram confiadas no exercício quotidiano do seu ministério.

60. A própria celebração educa esta qualidade da presidência; repetimos, não é uma adesão mental, embora toda a nossa mente, bem como a nossa sensibilidade, estejam envolvidas nela. O sacerdote é, portanto, treinado para presidir através das palavras e dos gestos que a Liturgia coloca em seus lábios e em suas mãos.

Ele não se senta em um trono, porque o Senhor reina com a humildade de quem serve.

Não rouba a centralidade do altar, sinal de Cristo, de cujo lado, trespassado na cruz, jorrava sangue e água, início dos sacramentos da Igreja e centro do nosso louvor e ação de graças.

Ao aproximar-se do altar para a oferta, o sacerdote aprende humildade e arrependimento com as palavras: “Aceita, Senhor, nossos corações contritos e espíritos humildes; seja este o nosso sacrifício de hoje e seja agradável na tua presença, Senhor nosso Deus» 

Não pode vangloriar-se do ministério que lhe foi confiado, porque a Liturgia o convida a pedir para ser purificado, com o sinal da água: «Lava, Senhor, o meu crime, e purifica o meu pecado».

As palavras que a Liturgia põe em seus lábios têm significados diferentes, que exigem tonalidades específicas: pela importância dessas palavras, pede-se ao sacerdote que dê uma verdadeira arte de falar. Estes moldam seus sentimentos íntimos, seja na súplica ao Pai em nome da assembléia, seja na exortação dirigida à assembléia, bem como nas aclamações junto com toda a assembléia.

Com a oração eucarística – da qual participam também todos os baptizados, ouvindo com reverência e silêncio e intervindo com aclamações – quem preside tem a força, em nome de todo o povo santo, de recordar ao Pai a oferta da seu Filho na última ceia, para que esta imensa dádiva volte a estar presente no altar. Ele participa dessa oferta com a oferta de si mesmo. O sacerdote não pode falar com o Pai sobre a Última Ceia sem participar dela. Ele não pode dizer: "Tomai e comei todos vós, porque este é o meu Corpo, que será dado por vós", e não viver o mesmo desejo de oferecer o seu próprio corpo, a sua própria vida pelas pessoas que lhe foram confiadas. É o que acontece no exercício do seu ministério.

O sacerdote é continuamente treinado na ação celebrativa para tudo isso e muito mais.

* * *

61Quis apenas oferecer algumas reflexões que certamente não esgotam o imenso tesouro da celebração dos santos mistérios. Peço a todos os bispos, sacerdotes e diáconos, aos formadores dos seminários, aos professores das faculdades teológicas e escolas teológicas, e a todos os catequistas, que ajudem o povo santo de Deus a beber daquilo que sempre foi a principal fonte de espiritualidade cristã. Somos continuamente chamados a redescobrir a riqueza dos princípios gerais expostos nos primeiros números da Sacrosanctum Concilium, compreendendo a íntima ligação entre a primeira Constituição conciliar e todas as outras. Portanto, não podemos voltar àquela forma ritual que os Padres Conciliares, cum Petro e sub Petro, sentiram necessidade de reformar, aprovando, sob a orientação do Espírito e segundo sua consciência de pastores, os princípios dos quais nasceu a reforma. . Os santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, ao aprovar os livros litúrgicos reformados ex decreto Sacrosancti Œcumenici Concilii Vaticani II, garantiram a fidelidade da reforma ao Concílio. Por isso, escrevi Traditionis custodes, para que a Igreja possa suscitar, nas várias línguas, uma única e idêntica oração capaz de exprimir a sua unidade. Esta unidade que, como já escrevi, pretendo ver restaurada em toda a Igreja de Rito Romano.

62. Gostaria que esta carta nos ajudasse a reviver o espanto diante da beleza da verdade da celebração cristã, a recordar a necessidade de uma autêntica formação litúrgica e a reconhecer a importância de uma arte da celebração, que está a serviço da verdade do mistério pascal e da participação de todos os batizados, cada um com a especificidade de sua vocação.

Toda essa riqueza não está longe de nós: está em nossas igrejas, em nossas festas cristãs, na centralidade do domingo, no poder dos sacramentos que celebramos. A vida cristã é um caminho contínuo de crescimento: somos chamados a deixar-nos formar com alegria e em comunhão.

63. Por isso, gostaria de deixar mais uma indicação para continuarmos nosso caminho. Convido-vos a redescobrir o sentido do ano litúrgico e do Dia do Senhor: também esta é uma ordem do Concílio (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 102-111).

64. À luz do que recordamos anteriormente, entendemos que o ano litúrgico é a possibilidade de crescer no conhecimento do mistério de Cristo, mergulhando a nossa vida no mistério da sua Páscoa, enquanto aguardamos o seu regresso. É uma verdadeira formação contínua. Nossa vida não é uma sucessão casual e caótica de eventos, mas um caminho que, de Páscoa a Páscoa, nos conforma a Ele enquanto aguardamos a vinda gloriosa de nosso Salvador Jesus Cristo [24].

65. Ao longo do tempo, renovado pela Páscoa, a cada oito dias a Igreja celebra, no domingo, o acontecimento da salvação. O domingo, antes de ser um preceito, é um dom que Deus faz ao seu povo (por isso a Igreja o protege com um preceito). A celebração dominical oferece à comunidade cristã a possibilidade de se formar através da Eucaristia. De domingo a domingo, a Palavra do Ressuscitado ilumina a nossa existência, querendo realizar em nós aquilo para que foi enviada (cf. Is 55,10-11). De domingo a domingo, a comunhão no Corpo e Sangue de Cristo quer também fazer da nossa vida um sacrifício agradável ao Pai, numa comunhão fraterna que se torna partilha, acolhimento, serviço. De domingo a domingo, a força do Pão partido sustenta-nos no anúncio do Evangelho em que se manifesta a autenticidade da nossa celebração.

Abandonemos as polêmicas para ouvirmos juntos o que o Espírito diz à Igreja, mantenhamos a comunhão, continuemos a nos maravilhar com a beleza da Liturgia. A Páscoa nos foi dada, preservemos o desejo contínuo que o Senhor continua a ter de poder comê-la conosco. Sob o olhar de Maria, Mãe da Igreja.

Dado em Roma, em São João de Latrão, no dia 29 de junho, Solenidade dos Santos Pedro e Paulo, Apóstolos, no ano de 2022, décimo do meu pontificado.

FRANCISCO

Fonte: Santa Sé (tradução: google)





Nossa Senhora do Carmo, rogai por nós!
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