Assumir os cabelos brancos expõe o corpo tal como é, encarando o
que nos está a acontecer a todos: envelhecer. Falámos com mulheres que
tomaram essa decisão e não querem voltar atrás.
Nos últimos anos afirmou-se várias vezes que o cinzento é o novo
preto. Os mais de 50 tons de cinzento estão na moda não só na roupa, mas
também no cabelo. Rihanna, Cara Delevingne ou Lady Gaga adotaram a
certa altura os cabelos brancos. Pela internet, a hashtag
#grannyhair revela milhares de mulheres jovens que descoloraram ou
pintaram o cabelos de branco, sem que isso tenha feito delas avozinhas.
É
um paradoxo fácil de perceber que os únicos cabelos brancos que não
estão na moda sejam os naturais, aqueles que aparecem com a idade (ou
não), os que não se escolhem como e onde devem aparecer: o ideal é a
juventude e, em alguns casos, o cabelo é o primeiro a lembrar-nos que o
tempo continua a correr, o futuro e a velhice são inevitáveis. “E
então?”, perguntam as quatro mulheres que se seguem, entre os 45 e os 64
anos. Todas elas assumem os seus cabelos brancos de olhos fixos no
inegável cronómetro e desafiadores para a sociedade. Não são invisíveis, como diz o mito das mulheres de cabelos grisalhos; pelo contrário, toda a gente repara nelas.
Mantêm o cabelo assim porque é bonito, porque não têm tempo ou dinheiro
para a manutenção de um cabelo bem pintado, porque querem levantar o
queixo e dizer que estão presentes como são, sem pedirem desculpas. Para
todas foi uma escolha que lhes libertou a cabeça de quaisquer pressões e
que nos permitiu falar do que é estético, político e da velhice.
Ana Perez-Quiroga, 56 anos, artista plástica
Manter os cabelos brancos foi sempre uma escolha política?
Sempre foi. Há cerca de dois anos li uma entrevista da Mary Beard [historiadora e apresentadora de programas na BBC], que tem o cabelo branco e comprido, e dizia que sempre tinha sido uma questão política não pintar os cabelos mas que era profundamente criticada, que lhe mandavam e-mails a insultá-la. As pessoas sentiam-se ofendidas e agredidas por ela manter os cabelos brancos, não só homens mas também mulheres — “como é que você se atreve a ter os cabelos brancos?”. Eu venho de gerações de mulheres como a Susan Sontag que sempre tornaram isso um marco, não só de personalidade mas de confronto que afirma “eu estou aqui e eu sou assim”. De repente eu estou a reivindicar um espaço social.
Ana Pérez-Quiroga faz questão que a tratemos sempre por tu, fica assente assim que entramos em sua casa, esse lugar que para além de ser aquele que habita, é também o objeto da sua tese de doutoramento concluída há pouco, mas em constante (e quase viciante) crescimento. Fotografou todos os objetos que lá estão e por objeto entende-se tudo, com exceção dos perecíveis ou do que se vai gastando — o arroz, a fruta, o papel higiénico, os sabonetes. De resto, o privado tornou-se público no site onde exibe tudo o que há na sua casa. “Até a roupa interior, é a mesma coisa que a estender à janela”, resume. Como a casa se tornou simultaneamente espaço íntimo e público, também entende que o seu corpo vive nesta fronteira e o cabelo ajuda-nos a compreender isso.
Porque é que mantens os cabelos brancos?
A sociedade de alguma forma empurra-nos para pintarmos os cabelos. Estamos a falar das mulheres, que são altamente penalizadas pela idade que têm e quanto mais anos passam sobre elas… está associada às mulheres uma eterna juventude. É mais fácil ser um homem com mais idade do que uma mulher com mais idade — em termos de sociabilidade, no trabalho também há penalizações. E ter cabelos brancos também incorpora um discurso político — bom, qualquer ação que façamos é política. Se eu me permito ter os cabelos brancos é evidente que é um statement: eu reivindico para mim um papel que não joga o mesmo jogo social que nos é de alguma forma imposto. Em primeiro lugar sou feminista e interessa-me que este seja um espaço de liberdade: tomarmos a liberdade para o nosso corpo. É claro que sabemos perfeitamente que os cabelos brancos pesam mais, tornam a pessoa com mais idade, mas isso é uma coisa com que também vou jogando. 98% das minhas amigas que tenham a minha idade têm os cabelos pintados. As minhas amigas que pintam o cabelo não parecem ter 56 anos, eu já pareço que tenho essa idade. Depois, pelo cabelo, pela maneira como tem o cabelo arranjado e pintado, tu podes ver a classe social, porque não é uma cabeleireira qualquer que pinta bem.
"A sociedade empurra-nos para pintarmos os cabelos.
Estamos a falar das mulheres, que são altamente penalizadas pela idade
que têm. Está associada às mulheres uma eterna juventude. É mais fácil
ser um homem com mais idade do que uma mulher com mais idade."
Exatamente. Então o que tu vês são os amarelos muito mal pintados, ou os castanhos e os pretos. E o cabelo está sempre a crescer, tens de pintar o cabelo quase semanalmente. É uma renda. Não quer dizer que eu tenha poupado muito dinheiro, mas de repente, quando não se joga esse jogo, começas a pensar que a quantidade de coisas que precisas para manter um cabelo saudável e bonito custam dinheiro. É uma reflexão também económica, porque se eu tivesse o cabelo pintado, também não o quereria ter mal pintado. Tive uma vez o cabelo pintado de castanho durante uns quatro meses — acabei por o cortar todo ainda mais para tirar a cor — mas durante esse tempo a manutenção dessa cor foi uma coisa super cuidada porque depois tens de ter umas máscaras e uns cremes especiais.
Com que idade começaste a ter os primeiros cabelos brancos?
Aos 18 tinha duas grandes madeixas brancas e mantive-as sempre. Só pintei o cabelo uma vez, já tinha uns 38 anos — foi para um trabalho fotográfico. Mas durante muitos anos, talvez mais de 20, usei o cabelo todo com gel para trás e apanhado com um rabo de cavalo pequenino e isso tapava um bocado esses brancos — durante muitos anos não se notava. Depois em 1998, quando foi a Expo, estava a fazer uma produção no teatro Maria Matos com o João Pedro Vale e o Nuno Alexandre Ferreira e um dia decidimos que íamos os três rapar o cabelo. Aí quando deixei de o usar apanhado e passei a usá-lo solto, apercebi-me de que estava realmente muito mais grisalho e de que todos os anos fica mais grisalho.
Qual é que foi a tua reação a esse confronto com os cabelos brancos?
Não sei… tu és confrontada com a tua idade. Depende do momento da vida em que tu estás — se estás mais débil na tua auto-estima ou não. Esse confronto pela primeira vez não me custou absolutamente nada. É claro que às vezes uma pessoa está com a auto-estima ligeiramente mais baixa porque teve algum problema emocional ou outra coisa qualquer e talvez isso seja motivo para perceber “ah! estou muito mais velha”. Penso que só se começa a dar por isso a partir dos 40. Eu tinha uma visão perfeita para o longe e para o perto e a partir dos 41 anos o músculo dos olhos perde esta elasticidade e começas a ter de usar óculos. É nesse momento em que começas a confrontar-te com o teu corpo que aos poucos já não está a acompanhar a tua cabeça que dispara. Aos 41, quando tive de pôr óculos parecia-me tudo banal, mas agora, a partir dos 54, 55, começa a notar-se que há pequeninas falhas no corpo — já não corro os quilómetros que corria, antigamente trazia duas bilhas de gás pelas escadas. Há uma falência desta vitalidade. O cabelo é um bocadinho o resultado.
Na altura em que te apercebeste do cabelo branco ponderaste pintá-lo?
Não, nunca ponderei.
No teu dia-a-dia tens a experiência da Mary Beard?
Não, diretamente eu não sinto que me tratam pior, nunca fui julgada. Mas penso que mais uns anos e posso vir a ser.
Porquê daqui a mais alguns anos?
Porque de repente temos mais rugas, parecemos mais velhas e o cabelo branco marca sempre ainda mais a idade. Vêm sempre as perguntas: pões o botox ou não pões o botox, pintas o cabelo ou não pintas o cabelo?
No fundo a pergunta é o que fazemos à velhice.
Sim, e é isso que combato. Cada vez mais estamos a esconder os idosos, cada vez há menos respeito por alguém mais velho. Eu passo meses na China e lá tens um grande respeito pelas pessoas que são os teus avós ou que são de uma outra faixa etária e que detêm o saber. Como é que nós, de repente, vivemos nessa ideia um bocadinho americana de que a experiência destas pessoas não é validada. No Oriente ainda se valoriza a experiência que é de uma vida, da sua compreensão, mas também de um gesto: para o mestre de sushi de 97 anos o que importa é o gesto. Ele repete o mesmo gesto há 80 anos, é um gesto perfeito.
Como é que te sentes ao lado das pessoas da tua idade que pintam o cabelo?
É evidente que destoo.
E gostas disso?
É a minha personalidade, mas isso também se paga.
Como?
O olhar social é um olhar diferente, não te sei explicar muito bem. Especialmente em outros meios mais pequenos, fora daqui de Lisboa.
"Sabemos perfeitamente que os cabelos brancos pesam
mais, tornam a pessoa com mais idade, mas isso é uma coisa com que
também vou jogando. 98% das minhas amigas que tenham a minha idade têm
os cabelos pintados. As minhas amigas que pintam o cabelo não parecem
ter 56 anos, eu já pareço que tenho essa idade."
Não sei como responder-te… é uma coisa que vem de um bem-estar interior. Se a minha auto-estima estiver um bocadinho mais em baixo, é claro que me sinto menos forte. E nesse dia se calhar penso: “se eu não tivesse o cabelo branco se calhar sentia-me melhor, ou mais nova, com mais vitalidade”. Mas não sei muito bem responder.
Nunca pensas em voltar a pintar?
Quando pintei não achei nada de especial. Achei que prefiro o cabelo como está. Acho mais interessante, mais forte. Acho bonito. Acho que as mulheres quando pintam o cabelo, por muito bem pintado que esteja, de alguma forma tornam-se mais iguais. Assim tem mais carácter, mais power.
Fonte: Observador
Maria Santíssima, rogai por nós!
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